Literatura Brasileña – LALT https://latinamericanliteraturetoday.org/es/ Latin American Literature Today Wed, 25 Sep 2024 22:25:41 +0000 es-ES hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.7 Rastros https://latinamericanliteraturetoday.org/es/2024/09/rastros/ https://latinamericanliteraturetoday.org/es/2024/09/rastros/#respond Mon, 23 Sep 2024 17:02:12 +0000 https://latinamericanliteraturetoday.org/?p=36669 Nota del editor: Este texto está disponible en portugués e inglés. Haz click en “English” para leer en inglés.

 

Motivo não ceciliano

Canto porque a vida é incompleta.
De espantar o pranto a velha receita
bênção e salvação de poeta.

 

Lembrando Rimbaud

Clamo aos céus força
para gritar o meu não
com o auge do pulmão.

Por covarde delicadeza
não quero perder a vida.

 

Mistério

Recorro ao método de Descartes
dividindo o problema em partes.
Pego então a palavra mistério
e desagrego-lhe os fonemas
um a um, qual pétalas de flor.
M    i    s    t    é    r    i    o
Restam-me questões menores
e não desvendo nenhuma.
Continuo sem saber se trevas
são a incompetência do olhar
ou a parca luz das estrelas.

 

Fases da lua

Li Po errou ao declarar que os homens
jamais conseguiriam apanhar a lua.
(Trouxeram até areia de lá)

Li Po acertou ao dizer: os homens
de hoje não veem mais a lua de outrora.
(Não pela inconstância de seu esplendor
e sim pela mudança de nosso olhar)

Algo se sabe do agora e do ontem.
Do futuro há de se indagar tudo.

 

No meio do caminho

No meio de nosso caminho
tinha também uma pedra.
Não a pedra do poeta
verbal abstrata alegórica.
Tinha, sim, uma pedra renal
concreta crônica sólida.
Tinha uma pedra plural:
extraída uma, outra surgia.

Nunca esqueceremos
o lar mudado em hospital.
Dentro do corpo tinha um cálculo
obstáculo à união carnal.
Tinha uma pedra no caminho
do paraíso real.

 

 

Foto: Vasilina Sirotina, Unsplash.
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Trecho de Puro https://latinamericanliteraturetoday.org/es/2024/09/trecho-de-puro/ https://latinamericanliteraturetoday.org/es/2024/09/trecho-de-puro/#respond Mon, 23 Sep 2024 17:01:35 +0000 https://latinamericanliteraturetoday.org/?p=36530 Nota del editor: Este texto está disponible en portugués e inglés. Haz click en “English” para leer en inglés.

 

São três mulheres velhas que moram em uma casa grande, também velha.

Há no casarão um menino de mais ou menos quinze anos. 

Lázaro não é filho e nem neto de nenhuma delas. Estuda em casa. Dália ensina religião e piano. Lobélia ensina idiomas. Alpínia ensina culinária e noções de anatomia. O volume do rádio está sempre alto para as velhas escutarem música e, dizem as crianças pela cidade, abafar as vozes do sótão. 

A cidade se chama Santa Graça – referência de virtude e limpeza no território nacional. No futuro, negrinho ou doente nenhum foi visto ali.

 

ÍCARO ATRAVESSA O OCEANO

 

Brasil, década de 30

 

Lázaro grita:

Lava a mão, Íris, esfrega. Lava direito pra ver se o preto sai. 

 

Íris pensa:

Menino mentiroso. Lázaro fala que veio da Alemanha, mas a velha Alpínia diz que o moleque não é muito confiável e sua origem é mais local e precisa: Três Vendas, zona rural de Santa Graça. A mãe dele, que ninguém conheceu, largou a criança na rua. Uma vez, Dália e Lobélia passavam no povoado para comprar marmelo da fazenda Bela Vista, se depararam com um embrulho de fiapos dentro de balaio. Era o menino muito branco. Olharam para os lados. O ar seguro. Seco. Ninguém. Tarde firme. Ninguém em lugar nenhum debaixo do calor intenso e alaranjado. Sentaram-se na soleira da capela e esperaram quase a tarde toda que alguém chamasse pelo menino. Foi assim que nasceu o Lázaro. Nasceu de ninguém querer.  

Era branco feito nuvem e era raro achar criança pura assim sem pai e mãe. Sobrava era pretinho sem família. Isso tinha aos montes. Andavam em bandos pedindo restos de comida e água nas casas das famílias ricas de Santa Graça. Foi assim que eu cresci, foi assim que cresceu o monte de menino do Mata Cavalo e assim teria crescido o meu Joaquim, se tivesse vingado. 

Numa segunda-feira, depois do menino Ícaro voltar da escola, ele se pendurou na varanda do quarto da mãe dele e viu passar uns quatro, cinco meninos que pararam no casarão. Gente minha: roupas ajambradas em tom alaranjado de terra batida. Pediam um copo d’água. Aqui na casa do Ícaro eu não posso abrir a porta pra eles, a avó do Ícaro não me deixa. Quando me veem da grade, gritam meu nome para buscar pão velho. Se eu for, dona Rosa me manda embora. O Ícaro e os pretinhos não podem nem conversar. Dona Rosa e a mãe do menino, a dona Ondina, ensinaram que os negrinhos entravam na casa dos outros para roubar. Eram diferentes dos ciganos que entravam para ler a nossa mão e nos contar sobre o futuro; roubavam e a gente nem se dava conta. Os meninos de cor, preciso fosse, batiam nos outros e levavam as coisas compradas com tanto sacrifício. A dona Rosa dizia também que eram preguiçosos porque se eles que eram brancos estudavam e trabalhavam para conseguir os confortos da vida, por que os pretos não faziam o mesmo? 

Tenho saúde e agradeço ao Deus Pai a cada noite. Tenho também vontade de matar a dona Rosa. Padre Arcanjo me ensinou a rezar para Deus e Jesus. É um santo homem; me ensinou também a não me entristecer por servir os outros. Tudo é vontade de Deus e Ele sabe o que faz. Pertence a mim o reino dos céus. Padre Arcanjo me lembrava da vida boa que eu tinha. Minhas avós de certo foram escravas e, graças a Deus, tudo melhorou muito.

Saí da janela para que os meninos não me vissem e espiei quando bateram palma e tocaram a campainha das três bruxas. Ícaro lá, de olho neles. Coitado, queria era brincar.

Lobélia abriu a porta. Fez sinal para esperarem na varanda e vi quando chamou alguém de casa. Dália foi até a varanda, deu batidinhas leves nas cabeças dos meninos que abriram a boca e mostraram os dentes, mas não era sorriso.  Alpínia chegou com água e biscoito e uma toalha que Dália usou para limpar as mãos depois de encostar nas crianças. Ela mandou que voltassem no dia seguinte para comerem pão, mesmo horário. Os meninos desceram os degraus da varanda que dava para a rua. Pareciam alegres. As mãos sujas de terra agarravam os caramelos pretos que ganharam, aqueles com gosto de queimado, que grudam nos dentes. Um dos pretinhos achou o Ícaro. Ele sorriu seus dentes todos, os mesmos que tinha mostrado há pouco às donas do casarão. Ícaro teve medo, não do menino, mas da avó ver ele sorrir pro moleque. Ele se escondeu atrás da cortina. Uma pontada bem perto da orelha direita. Olhei para o chão. Procurei o neguinho. Ele sorriu de novo, abanou a mão e foi embora. Apanhei do sinteco encerado o caramelo que ele jogou pro Ícaro. 

Terça, quarta e quinta a mesma coisa se repetiu. Os meninos do Mata Cavalo batiam na porta do casarão, Alpínia ou Lobélia davam pão e água. Dália dava leves batidas nas cabeças deles, enchia-lhes as mãos sujas de caramelos e eles iam embora. O mesmo menino que jogou a bala para Ícaro, jogou vários outros até chegar sexta-feira que foi quando eu vi pela última vez o menino da Ester. 

 

Ícaro pensa:

A Íris lava prato, lava roupa, lava o chão e a mão dela continua preta. Ela esfrega a trouxa no tanque, água sanitária no chão da varanda. Não adianta: a mão dela é sempre preta. 

Eu vi que o menino dos caramelos e mais quatro bateram palma no casarão e dessa vez entraram. Eram quase sete da noite e o cheiro da sopa vindo do casarão era sinal de que os meninos tinham sido convidados a se sentarem à mesa, comer feito gente. Talvez um naco de pão fresco para acompanhar o creme de milho que eu cheirava da varanda do quarto da mãe. 

Eu me pendurei na janela até às oito quando a mãe me gritou que a janta estava pronta. Das sete até às oito nem sinal deles. Deviam estar se enchendo de comida de verdade. 

Custei a dormir. A rua calada já há horas e eu sem conseguir pegar no sono. Pensava no menino do caramelo; preto não podia ser meu amigo. A vó nunca que ia deixar. Nem a mãe e nem o pai. Durante a semana brincamos de arremessar caramelo um para o outro, ele lá e eu aqui. Olhei debaixo da cortina, por todo o chão de sinteco alaranjado, mas não achei nada. 

Os patos do casarão fizeram barulho e já era tarde. Esgoelavam como se alguém roubasse a casa. Mas nada acontecia em Santa Graça. Aquilo era só o cachorro com raiva ou com fome. Latido forte que demorou quase meia hora para cessar. Quando o bicho terminou de latir, dormi.  

 

Lázaro diz:

A Íris lava prato, lava roupa, lava o chão e a mão dela continua preta. Ela esfrega a trouxa no tanque, água sanitária no chão da varanda. Não adianta: a mão dela é preta e suja.

Minha mãe de sangue era alemã. Me deu porque não tinha marido. Padre Arcanjo pediu para as três velhas me olharem e me criarem. Meu sangue é puro, basta me olhar. Não quero brincar com o Ícaro porque ele é retardado. 

 

Dona Rosa manda

Vai brincar com o Lázaro, Ícaro. Menino bonzinho. A Íris não pode te olhar. Ela tem que limpar a casa, lavar os banheiros, fica toda suja. Não vai encostar nela, meu filho. Deus fez cada um de uma cor que é para que a gente saiba diferenciar o papel de cada um. E a gente não vai brigar com Deus. Onde já se viu?

 

Olavo explica:

Sou louco pelo meu filho. Ícaro é um menino bom, mas tem muitas limitações. Alguma coisa genética que a gente não sabe explicar. Eu e a Ondina fazemos tudo por esse menino e queremos que ele tenha uma vida normal. Ele vai à escola. É muito querido pelos alunos. Não sei se sentem pena dele, aquela coisa das pernas bambas que ele tem, coitado do meu filho. Mas as outras crianças normais adoram o Ícaro. A gente sente só de ver a carinha dele. Deus é pai todo poderoso e nos deu esse menino para cuidar. Temos muitos gastos com o Ícaro, os remédios são caros, mas valem cada centavo para vê-lo melhor. A Ondina é uma companheira única. Tirei a sorte grande. Fomos abençoados com Ícaro. 

 

Olavo pensa:

Como essa criança baba, tropeça, me dá vergonha. Voa, Ícaro, voa.

 

Ícaro pensa:

De casa, todos os sábados, ao meio-dia, a rua inteira ouve as aulas de piano do Lázaro. Emenda piano com canto e a lição chega a durar uma hora e meia. É também a hora em que o cachorro enlouquece. Piano, latido, canto atravessam a rua. Do meu quarto dá pra sentir tremer o chão. O relógio bate uma e meia e volta à casa o silêncio. O som alto vindo da casa me incomoda. Quando fica difícil ouvir tanta confusão, eu bato a cabeça na parede para ver se sai aquele barulho todo de mim.

Sem escola para ir naquele dia, passei o tempo todo na janela procurando ver os meninos do caramelo. Nada. Devem ter saído do casarão enquanto eu jantava. Nos desencontramos. Íris também não viu quando saíram. Talvez passassem por ali depois das seis. Era certo que sentiriam fome e sede e bateriam as campainhas das casas até alguém dar a eles um resto de comida. O menino do olho preto brilhante me procuraria e jogaria no chão do quarto da mãe, mais um caramelo para a gente brincar.  Mas ele não passou nem às seis, nem às sete, nem hora nenhuma. 

No casarão, um cheiro forte de comida. Cozinhavam a carne de domingo. As três irmãs cozinhavam juntas. Dava para ver do quarto dos fundos da minha casa, uma ponta do fogão à lenha delas. Potes enormes. O fogo constante, uma função sem fim de comida, talheres, ervas colhidas no quintal. A cozinha era escura, velha. Todo domingo faziam carnes temperadas, aromáticas, corte de primeira como Alpínia mesma dizia quando me via na janela dos fundos olhando a vida deles.

 

Ondina pensa:

Todo domingo, antes de almoçar, as três vizinhas do casarão vão à missa. Eu também vou. Olavo e mamãe me acompanham. Levamos o Ícaro porque meu menino precisa muito de oração. Nossa Senhora dos Milagres há de interceder e dar a ele as pernas fortes que ele merece, uma fala clara e límpida, a cabeça certa, tadinho.  Compartilhamos o pão que é o corpo de Cristo e engolimos o bolo empapado que vira a hóstia depois de breve prece. Deus que me perdoe, mas aquilo me embrulha o estômago desde o catecismo. 

Vão as velhas e o menino Lázaro. Voltam as velhas, Lázaro e o padre Arcanjo que almoça no casarão todos os domingos sem falta. 

O domingo inteiro passa e o padre Arcanjo sai do casarão às quatro da tarde. Carrega uma bolsa e uma marmita. As velhas do casarão o mimam o quanto podem. São muito devotas e mantêm uma relação de estreita amizade com o padre. De vez em quando, padre Arcanjo leva o Lázaro com ele para a igreja. Quando coincide de eu estar na varanda e ver eles saírem, o padre explicava que Lázaro toma aulas de Latim com ele e domingo à tarde, horário de folga das rezas.

 

Ondina comenta:

Aulas de latim… Sei.

 

Íris faz

Café pro Olavo.

 

Olavo olha

Íris lava a colher ensaboada pra cima, pra baixo, pra cima, pra baixo.

 

Ícaro pensa:

Naquele domingo, esperei mais uma vez que os meninos da rua fossem no casarão pedir comida, mas não foram. Meus pais insistiam para que eu brincasse com Lázaro esquisito. Dizia ser médico e cortava bichos pela metade. Costurava e colava pernas de aranhas em corpo de formiga. Tinha também uma coleção de ossos que ele encontrava debaixo da terra. Lobélia contava que antes de comprar o terreno do casarão, ali tinha sido um cemitério de cachorros. Mas aquilo era história para assustar criança. O que tinha debaixo da terra era gente mesmo que há muitos anos estava enterrada virando adubo e lenda. Lázaro achava ossos e construía esqueletos de seres imaginários. Monstros que ele via.

À noite, lá pelas seis, o cachorro latiu com toda a sua força. O rádio em volume máximo por causa das velhas surdas. Uma hora depois, silêncio. A calada do início da noite de domingo foi quebrada com o ranger do portão de ferro coberto por lodo e ferrugem. Padre Arcanjo trazia Lázaro de volta. Elogiou o progresso do menino no Latim e avisou que Lázaro já estava de banho tomado. O menino tinha se deliciado com doce de leite e se lambuzado mais que o aceitável para um rapazinho daquele porte. O santo padre sugeriu, então, que se limpasse na casa paroquial antes de voltar para casa. Sem mais conversa, Alpínia se despediu do padre que subiu o morro segurando a batina para não tropeçar, cabeça baixa, sempre humilde. 

Fui dormir sem me esquecer do menino do caramelo. O menino que, pelo jeito, estava desaparecido.

 

Fragmento de la novela Puro
Relógio d’Água, 2023; Todavia, 2024

 

 

Foto: Rafaela Biazi, Unsplash.
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Quatro microcontos https://latinamericanliteraturetoday.org/es/2024/06/quatro-microcontos/ https://latinamericanliteraturetoday.org/es/2024/06/quatro-microcontos/#respond Tue, 11 Jun 2024 19:02:48 +0000 https://latinamericanliteraturetoday.org/?p=34720 Nota del editor: Este texto está disponible en portugués e inglés. Haz click en “English” para leer en inglés.

 

Rosas lilás

Saio de casa com a sensação de que, caso encontre uma flor pelo caminho, e mediante a beleza e a contundência de sua aparência, talvez eu não vá trabalhar e me deixe levar por uma outra atividade: a contemplação.

Chove, tornando a cidade um tanto melancólica e os horizontes meio embaçados. Qualquer um adivinharia um domingo, no entanto, o número correto é dois. O segundo dia da semana.

Passo por entre todo este chão molhado com uma certa delicadeza tentando preservar a boa aparência dos meus sapatos. Jamais confiei em alguém com os sapatos sujos. O guarda-chuva preto envelhecido precocemente por falta de bons tratos protege meus cabelos e a garganta de uma ocasional gripe.

Tento prestar atenção na música do dia, sim, porque caso estejamos atentos, é perfeitamente possível deixar tocar, dentro das nossas cabeças, a música do dia, aquela companheira do subconsciente que traz, como o interior de um biscoitinho da sorte chinês, uma mensagem com total livre arbítrio.

Nenhum sinal de qualquer flor, muito menos de uma rosa. A rádio subconsciente deve ter sido apanhada por alguma interferência consequente da chuva, e não toca absolutamente nada hoje. Um dia pálido, propício a desejos de encontros com rosas lilás.

Rumo ao trabalho. À procura de rosas que jamais apareceram numa segunda feira, sigo. Rosas dificilmente sobrevivem após o assédio de fim de semana dos cães e das crianças no térreo dos prédios da minha organizada vizinhança. Sigo. Com uma estranha forma de contemplar, com a firme convicção de olhar tudo à minha volta. Com uma conhecida esperança. Persistente. Sagrada.

Os sonhos permanecem embora eu não anote todos. Também as tempestades e as crianças famintas por toda parte. Alguns velhinhos continuam fugindo da loucura de suas famílias, frequentando asilos, e praticando diferentes tipos de evasão mental. Nesses asilos, os velhos continuam voltando a um passado, onde com certeza não existiam pitbulls. Onde crianças brincam de bem-me-quer e mal-me-quer. Onde as crianças brincam.

Ainda procuro a tal rosa. Ainda sonho com o instante sagrado em que brincarei de esconde-esconde. Escancararei meu medo e plantarei um jardim de rosas lilás no meu quintal, regadas com parcimônia. Sonharei bem alto. Abrirei a janela. Darei de cara com o sol. Abrirei a janela e darei de cara com a chuva. Abrirei a janela e darei de cara com a lua.

Aqui estou eu. Em meio à minha própria estrada. Contemplo a vida como uma possível história, que um dia contarei aos meus filhos, aos meus cães, à minha menopausa, e às minhas rugas. Rugas com desenhos de rosas lilás, de pétalas, de espinhos, de sapatos limpos, de fiapos de guarda-chuva velho, de manhãs de sol, de pingos de chuva, de banhos de lua, rugas de expressão de uma geração que ainda está a caminho e insistentemente em busca de algo, rugas da geração filtro solar.

 

Encontro

às três da manhã
Exu vem nu
Eu durmo em paz. 

 

Quimera

Foi essa história de céu
que não me deixou
viver a vida.

 

A lei do sangue

Cresci com medo de galos. Vovó Benedita criava galinhas, mas os galos mandavam no galinheiro, mais agressivos e ameaçadores. Havia violência doméstica nos galinheiros. Vó era cristã, Deus era amor, maldade era coisa do demo. Na minha mente infantil a ave entrou na conta também. Eu não estava inteira na primeira vez que ofereci uma ave pra Exu, não tinha superado a questão com os galos, talvez a falsa liturgia do sacrifício animal tenha ido para o inconsciente, a oferenda acabou ficando incompleta. Na segunda vez que alimentei Exu, eu era protagonista da minha cabeça, nem resquício do falso machismo aviário. Comprei um galo grande, parecia ancião, esguio e hipnotizante. Penas pretas e algumas em tom azul escuro. Encantador e negro, como eu.

Foi no sétimo dia. Não temi a minha força. O galo tinha cara de águia. Senti sua energia. Não gritou, nem mexeu. Tive vontade de fazer o corte até. Quando o sangue esguichou, já estava apaixonada. Ele era sangue do meu sangue.

 

 

Foto: Matheus Farias, Unsplash.
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Pai preto https://latinamericanliteraturetoday.org/es/2024/06/pai-preto/ https://latinamericanliteraturetoday.org/es/2024/06/pai-preto/#respond Tue, 11 Jun 2024 19:01:21 +0000 https://latinamericanliteraturetoday.org/?p=34713 Nota del editor: Este texto está disponible en portugués e inglés. Haz click en “English” para leer en inglés.


Para ele

 

Meu pai é preto.

Quando eu tinha onze, fomos morar na adolescência dele, do lado do campinho das peladas, no Morro Dunga, Jardim Míriam. Ele saiu de lá ainda tinha black power, mas quando eu fiz onze ele já era calvo, botava a culpa em mim e eu ria até ficar vermelha. Eu indo para a escola passava na frente e via a adolescência do meu pai gritando para passarem a bola no campinho, “a gente era uns dez, o Tavinho está vivo”.

Meu pai trabalhava no centro de São Paulo desde muito antes de conseguir parcelar o gol branco, quadrado, que levava e trazia a gente do Guarujá. Meu pai ia para o centro de ônibus, descia até a avenida Cupecê para pegar o primeiro, “você lembra da ditadura, pai?”, “sim, naquela época eles pediam a carteira de trabalho antes de bater”. 

Eu perguntava da luta contra os militares e ele só me falava do frio nas orelhas. 

Eu perguntava das passeatas, dos segredos, mas ele falava das mãos dele congelando e doendo e dele não sentindo mais nada até a ponta, “nas passeatas?”, “não, indo pro trabalho”. O frio, um frio terrível nas orelhas porque não podia usar touca, “não podia usar porque você era comunista?”, “não, não era por isso”.

O moleque meu pai ia trabalhar de madrugada, a cabeça descoberta, as mãos cruzadas no peito, ia duro de frio pra não morrer de apanhar. Os lábios mortos, a marmita tremendo na bolsa, um passo depois do outro tentando com raiva não desfazer o silêncio, “fala, vagabundo, vai para onde essa hora?”, “trabalhar, senhor”, “trabalhar? Com essa cara de favelado?”, “sim, senhor”, “cadê a carteira de trabalho?”.

O moleque meu pai não podia usar touca e nem enfiar a mão no bolso, ele ia devagar e apontava o bolso da calça para não levar um tiro. Meu pai ainda não enfia as mãos no bolso, às vezes ele é só um moleque e quando caminhamos juntos até o mercadinho eu pergunto: “não está com frio nas mãos, pai?”, eu pergunto e ele esfrega uma mão na outra, duas pedras tentando fazer fogo, “nesse calor?”.

Meu pai é preto.

Quando eu tinha onze a gente ia pro Guarujá no gol branco, ia e voltava no mesmo dia, eu querendo sentar na frente e ele “ainda não”. 

A gente descia a Imigrantes e paravam a gente e olhavam o carro e pediam meu documento, “é sua filha?”, “é, parece comigo?”, os policiais riam e eu ria também e o policial ficava sério olhando minha certidão de nascimento. Devolvia o documento para o meu pai terminar de dobrar e falava que ele parecia alguém, todas as vezes, “um conhecido nosso, policial”. 

[—-]

Um dia eu tomei coragem e perguntei para o meu pai: “por que você sempre parece com algum policial?”. Ele sorriu e eu nunca vi meu pai tão triste. 

Meu pai é preto.

Eu fiz treze e fomos morar na minha adolescência. Sentei no banco da frente com raiva, íamos de novo para o Guarujá, sempre o Guarujá, “não vai levar nada?”, meu pai pergunta, “já falei que não”. O policial “para, para, para”, sempre a mesma dança, o mesmo pedágio, “é sua filha?”, “é”, o policial olha o carro por dentro como um dentista, eu e meu pai dentro da boca aberta, “cadê o documento?”, olho para o meu pai, vim só com a roupa do corpo, o policial põe a mão na arma, “sai do carro”.

Meu pai é preto.

O policial me chama e eu não entendo, “senhorita?”, eu vou com ele tremendo, eu não entendo, “eu preciso que você fique calma e fique olhando pra mim, combinado?”, eu não entendo, eu tento procurar os olhos do meu pai e pedir socorro e pedir desculpas mas o policial entra na frente, “ele não tem como ouvir você”.

Eu enterro meu corpo dentro da blusa e sinto o frio do meu pai sem camisa lá atrás, sinto o frio do corpo dele de novo um moleque só de bermuda, o peito aberto diante da arma.

Eu abaixo a cabeça procurando meu pai aqui dentro e não falo nada com medo de as palavras derrubarem algo no chão, quebrarem, mas o policial insiste, “pode me contar a verdade”, eu só quero o meu pai, o abraço dele, “calma, não precisa ficar nervosa, eu sei que deve ser difícil para você”, o policial me provoca, “ele mandou você dizer que é filha dele, não foi?”.

Ele fala e eu levanto a cabeça com medo, com raiva, fazendo os cálculos, “fica calma”, a arma, o cacetete, a mão, “nós vamos proteger você”, eu não entendo, eu não quero entender, “pode falar a verdade agora”, eu fico quieta como meu pai me ensinou, “ele ameaçou você, não foi? Eu sei, mas não precisa ter medo, você está com dó?”. Eu fico tentando ouvir a respiração do meu pai lá longe e o polícia: “eu vou facilitar para você, não precisa nem falar, é só acenar a cabeça, é só piscar, um sinal, é só me dar um sinal e eu vou saber que ele está mesmo sequestrando a senhorita”. 

Meu pai é preto.

Eu sou branca, percebo.

 

 

Foto: Marcos Paulo Prado, Unsplash.
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Cemitério clandestino  https://latinamericanliteraturetoday.org/es/2023/12/cemiterio-clandestino/ https://latinamericanliteraturetoday.org/es/2023/12/cemiterio-clandestino/#respond Sat, 02 Dec 2023 07:02:22 +0000 https://latinamericanliteraturetoday.org/?p=28611 Nota del editor: Este texto está disponible en portugués e inglés. Haz click en “English” para leer en inglés.

 

Quando as sombras acobertam parte do dia e o sol recua alguns metros atrás das montanhas, os meninos sobem a rua, eufóricos. 

A bola, carregada com orgulho, passa de mão em mão. Todos querem tocá-la. Cada um deles pagou por um pedaço. Foram meses juntando dinheiro aqui e ali, realizando qualquer tipo de serviço. A bola havia de ser própria para futebol de campo, assinada por uma marca famosa, coisa profissional. 

Nos sete dias da semana, os sete meninos se revezam com a bola. Cada um tem um lugar especial para descansá-la. Nos barracos em que moram, em meio a escassez, a poeira e o fedor, a bola é o único bem material que possuem, a única coisa bonita para se admirar em casa. 

No topo da rua deserta, eles pulam o muro de um cemitério clandestino, que para eles é só um terreno com espaço suficiente para jogarem futebol sem serem incomodados. 

Atravessam o local até a outra margem do muro, em que há um trecho plano de chão batido que facilita o desempenho deles. Demarcam o gol com o que encontram pelos cantos, geralmente pedras, às vezes pedaços de ossos ressequidos. 

A partida começa: vagarosa, com passes sutis e dribles maliciosos. Minutos depois, ouve-se gritos de desforra, gestos rudes e palavrões. Ao menos dois dos meninos demonstram talento e algum futuro no futebol. Mas todos se empenham. É o momento em que viram ídolos imaginário, em que esquecem da miséria e da violência doméstica. 

Gostam de estar entre os mortos. Desses mortos. Sem nome, idade ou passado que os identifiquem. Os restos mortais se misturam às pedras e pedaços de madeira. É difícil distingui-los. 

Entre uma partida e outra, bebem água de uma torneira e se refrescam lavando as cabeças. Decidem fazer uma partida de penaults. Dois dos meninos se revezam no gol. É sempre o momento mais tenso do jogo, onde os fracassos e sucessos se evidenciam, quando os talentos se mostram desmascarados. 

O portão do cemitério é aberto e um caminhão pequeno entra. Os meninos param de jogar e vão se sentar num canto, observam a movimentação. 

Dois homens descarregam do caminhão sacos de ossos. Suspendem a lona que cobre uma cova e jogam a ossada de vários corpos ali dentro. Com uma pá, cobrem os ossos com pouca terra. Uma chuva haverá de revelar o que está escondido. 

Retornam ao caminhão e vão embora. Os meninos voltam a bater os penaults. A luz do dia está quase se apagando. 

Um menino, carregando uma sacola, pula o muro e cumprimenta os colegas. 

Caminha pelo local enquanto os outros concluem a partida de futebol. Espalhados estão algumas pequenas cruzes tombadas, crânios partidos, antebraços, fêmur, mandíbulas, costelas, entre outros cacos e lascas de ossos. Ele se abaixa e apanha alguns pedaços e observa-os na tentativa de identificar a parte do corpo. Decide por uma mandíbula e a coloca na sacola. 

O jogo termina e a luz do dia também. Resta apenas o tom cinzento dos vestígios de luminosidade que os torna assemelhados a vultos. 

Descem a rua, satisfeitos com a partida de futebol, comentando os melhores momentos. O menino mostra aos outros a mandíbula que encontrou. Riem e o chamam de maluco. Ele dá de ombros. 

Em casa, a bola agora limpa, resplandece numa prateleira. O menino adormece enquanto para ela, sonhando com um futuro promissor, sonhando com a partida do dia seguinte. 

Na casa ao lado, a mandíbula, ao lado de outros pedaços de ossos, resplandece numa prateleira. O menino adormece enquanto olha para ela, sonhando com esse pedaço de osso. Talvez seja o seu pai, talvez seja. 

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Foto: Morro do Cantagalo, Rio de Janeiro, Brasil, por william f. santos, Unsplash.
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O relato da fanática https://latinamericanliteraturetoday.org/es/2023/12/o-relato-da-fanatica/ https://latinamericanliteraturetoday.org/es/2023/12/o-relato-da-fanatica/#respond Sat, 02 Dec 2023 07:01:54 +0000 https://latinamericanliteraturetoday.org/?p=28893 Nota del editor: Este texto está disponible en portugués e inglés. Haz click en “English” para leer en inglés.

 

Disseram que naquela terra havia um homem que guardava nomes. Na noite anterior, ansiosa, planejara avançar certa, casa adentro, e se sentar convicta diante do nomeador. Imaginou-se, com o terço entre os dedos e as mãos no regaço do vestido de bolinhas brancas, narrando, sem rodeios, os motivos da visita e as  esperanças que no guardião de nomes depositava. Nada além. Ao cruzar a porta, contudo, uma enorme e desconhecida curiosidade obrigou-a a observar atentamente os detalhes da entrada — a mesinha de madeira maciça adornada em relevo, os três ganchinhos na parede a sustentar as chaves, o paletó e o chapéu fora de moda — para depois perceber a bem-organizada sequência de grossos volumes em capa dura que, do outro lado da sala, a observavam, sóbrios. À frente dos livros estava o guardião de nomes: os cabelos esbranquiçados, curvado demais para a idade. Caneta na mão, diante de si o enorme livro aberto. Não ergueu os olhos, indiferente a quem entrava: era exatamente como o haviam descrito. Finalmente avançou, os passos cuidadosos como se temesse ser atacada, os olhos fixos no nomeador. Nunca imaginara estar ali…

Sentou-se e percebeu a boca seca, um nó a maltratar-lhe a garganta. Estava assustadoramente próxima, capaz de reparar no formato do nariz e na pele das mãos do nomeador. Apertou o terço entre os dedos, machucando-se, antes de começar a falar. A voz saiu com dificuldade, as palavras tentando fixar-se sobre a língua áspera: precisava de um gole d’água, mas não pediria nem aceitaria nada dali. Respirou profundamente, esforçando-se pela salivação impossível, contraindo o abdômen como se fosse este um ponto de apoio. Enfim, anunciou que vinha em busca de um nome, mas não para si. Confessou o imenso esforço que isso lhe exigia, a imensa resignação, pois muito ouvira e muito se falara sobre aquela casa. Era um imenso amor que a levava até ali, esclareceu. Um amor absoluto. Um amor de sacrifício:

— Aqui venho por um amor como o do Cristo, uma verdadeira Paixão. Venho aqui atendendo a um chamado Dele — e fez o sinal da cruz — Que fique claro: aqui estou em missão sagrada.

Olhava fixamente, segura, na presença do nomeador, que ainda não erguera os olhos. Aguardou um instante por qualquer reação; não a encontrando — era mesmo um velho bruxo, alguma espécie de animal — iniciou a narrativa da forma como ensaiara. A compaixão era o sentimento que a definia, a voz que lhe guiava os dias. Criara os filhos, cuidava do marido, e de todos os demais filhos e maridos que pediam ajuda. Com ela contavam em cada festividade eclesiástica: era incansável, enérgica, auxiliava até na casa paroquial. Era catequista, vendia rifas, dispunha-se a auxiliar tanto na contabilidade quanto na limpeza da igreja. A vizinhança sabia que se um mantimento faltasse, ou uma criança adoecesse, ou fosse preciso ir à polícia prestar queixa, podiam contar com ela. “De uma incansável compaixão”, assim o padre a descrevera, na missa de aniversário, e era incapaz de se lembrar destas palavras sem sorrir. Sua compaixão era, fato, infinita: em suas orações, nada pedia além de vida longa e saúde para ajudar os outros.

Jamais teria se furtado, dessa forma, ao importante chamado que o diácono fizera, nos anúncios à comunidade. Mais do que desafiador, era empolgante, a possibilidade de estender a compaixão além das estreitas fronteiras de suas relações. Apesar da idade, foi a primeira voluntária, a primeira a marcar o nome no grupo que viajaria de ônibus até a aldeia: quinze horas de estrada para auxiliar na catequese. As cenas que o diácono descreveu a impressionaram: um grupo de mais de duzentos índios nus, sem contato com o mundo exterior. Nômades, sequer sabiam plantar. Viviam sujeitos aos humores da natureza, ao clima hostil, às feras, e agora aos madeireiros que, ameaçadoramente, se aproximavam. O conflito era iminente. Como mãe, como esposa, como cristã e catequista, não poderia sentir nada a não ser uma absoluta compaixão. Diziam que exagerava, que não era serviço para uma mulher da sua idade. A comunidade era grande, havia outros. Não quis ouvir aquilo: imaginava mesmo os duzentos índios em sua casa, em sua mesa, e ela se desdobrando para lhes ensinar tudo. Diziam que sequer sabiam usar o banheiro! Imaginava-se cuidando de todos durante a semana para, no domingo, levá-los enfileirados até a igreja, dando-lhes lugar na primeira fila. O chamado do diácono pegou-a do fundo da alma, sentiu que Deus falava diretamente com ela naquele momento. Àquela aldeia e àquela gente bruta levaria o seu melhor, o melhor da civilização…

Sequer viu passar os dois dias de viagem, rezando o tempo todo. As quinze horas previstas se baseavam na distância dividida pela imaginada velocidade média, o cálculo de um diácono, não de um motorista. Evitando as crateras da rodovia, escolhendo as estradas vicinais para não chamar a atenção da Polícia Florestal, a viagem tornou-se um desafio maior do que a catequese. O banheiro do ônibus não dava conta dos passageiros, faltavam mantimentos. Quando os jovens, cheios de energia e decisão na partida, quiseram desistir e retornar, ela se fez mais firme. Não esmoreceu, rezou o tempo todo, grata pela inabalável convicção com que o Senhor a havia ungido. Quando enfim encontraram o ponto de apoio, e a mata fechada atrás dele, os outros respiraram aliviados pela conclusão da viagem: ela fez o sinal da cruz, pediu uma vez mais força e vida longa, pois sabia que, na verdade, a jornada apenas se iniciava. Aquele era o grande momento de sua vida. Ali estava atendendo a um chamado.

Ao invés de, como os demais, descansar da viagem, esticar as costas, fazer uma boa refeição ou aguardar o horário da missa, ela pediu para ir de uma vez à aldeia. Ali estava para servir: já descansara, almoçara ou rezara o suficiente nesta vida. Era a pessoa certa sendo capacitada: queria que as vizinhas, o padre e toda a comunidade a visse ali, esbanjando disposição. Rejuvenescia! Eram os dias mais felizes de sua vida! Nas três horas seguintes, montada na caminhonete, selva adentro, esticava por todo instante o pescoço, ansiosa por divisar as malocas, conforme as imaginava. Sorriu ao dizer que se via como a própria colonizadora, erguendo a cruz em meio aos índios nus, observada com espanto. Ansiava por se doar, por ensinar. Queria salvar-lhes a alma, mesmo que fosse seu último sacrifício. Estava pronta para entregar tudo, se tudo fosse exigido. Quando finalmente chegou, era muito diferente do que concebera, mas se sentiu ainda mais confiante. Indignou-se com o motorista, que se manteve próximo do carro, a mão na arma. Ali estava para amá-los, como Cristo os amava. Desprezando todos os conselhos, entrou na aldeia com os braços abertos, rezando, convidando-os para a entrega, para a fé. Era o Senhor que agia através dela. Dos duzentos índios anunciados, contudo, só encontrou uma vintena…

Com os olhos marejados, narrou ao guardião de nomes a emoção que foi ser aceita, ver aquela gente brincar com seus brincos — tão simples, nem era joia — e gesticularem curiosos com suas roupas e o tom da pele. Ao ensinar-lhes a juntar as mãos em súplica e conduzir a oração que Jesus pregara, sentia que cumpria sua missão de vida. Eram tão puros… Mexiam em seus cabelos e, se ela se interessava por algo, simplesmente a entregavam. A morte os rondava; mantinham-se dóceis. Eram um campo fértil a aguardar pela semente: lá estava ela, com o privilégio de, pela primeira vez, levar-lhes a Palavra Sagrada. Só podia ser grata! Viviam como animais, ignorando tudo: o motorista contou que não plantavam, que morriam cedo, que adoravam uma espécie de tronco, que não entendiam as famílias, os casais se trocando com liberdade, as mulheres se dispondo a muitos maridos. Ninguém ensinava nada às crianças, não sabiam ler e escrever, não havia uma palavra a ser aprendida. Para ela, as críticas do motorista só tornavam aquela oportunidade ainda mais incrível. Seria ela a levar-lhes o mundo, a civilidade, a vinda do Cristo. O guardião de nomes podia compreender o que aquilo significava? Cabia-lhe dar a notícia de que o filho de Deus viera à terra e por eles morrera!

O nomeador ergueu os olhos, mas nada disse.

— Eu sabia que eram canibais: o diácono e o motorista haviam me alertado. Contaram também que enterravam vivas as crianças deficientes e os gêmeos, tudo para me assustar. Se faziam isso com crianças, o que não fariam comigo? Claro que era assustador, nem posso imaginar — chacoalhou a cabeça, benzeu-se —, porém, era a incansável compaixão que me movia. Estavam sozinhos, abandonados à própria sorte, depois da fronteira do fim do mundo. Cabia-me salvá-los…

Uma jovem índia, em especial, chamou-lhe a atenção. Sabia que o padre reprovaria tais ideias, mas confessou em voz baixa que, ainda assim, teve-as: era como se fosse sua filha, de outras vidas, tão forte e imediata a ligação. Estava ali por todos, mas antes por ela, soube-o de imediato. Tinha quatorze anos e dois homens a ladeavam. Perguntou se eram seus irmãos: descobriu que eram seus maridos; ambos! Era linda, delicada, a mais pura dentre aqueles puros. O tempo todo pegava-a pelo braço, mexia em suas coisas. Era adorável… Aconteceu como se planejado, mas, se ensaiado, não teria funcionado tão bem: chamou a mocinha para ver como o carro funcionava, trocou um olhar com o motorista. Deixou-a mexer nos espelhos e ligar o rádio — encantava-a a luzinha. Num instante, bateram as portas e arrancaram: ela se assustou, gritou por socorro enquanto os demais se agitaram, atiraram coisas, correram. Nada fez senão manter a moça entre os braços, sussurrando “filhinha, filhinha” em seus ouvidos, confortando-a como uma mãe que leva o filho ao médico para um procedimento dolorido. “Filhinha, filhinha”, repetia carinhosamente, enquanto o motorista acelerava rumo à cidade, onde estariam em segurança.

O guardião de nomes jamais poderá imaginar a imensidão do desafio que é criar uma jovem índia. Já nas primeiras horas, ela compreendeu a loucura que era sonhar em ter toda a aldeia em sua casa: aquela única alma selvagem dava-lhe mais trabalho do que todos os maridos e filhos de toda a comunidade! Imaginara ensinar o catecismo, guiá-la pelas orações, esclarecer os mistérios, mas, durante as primeiras semanas, nada fazia senão insistir para que a moça usasse o banheiro, comesse, se sentasse e dormisse da maneira correta. Cada vez que ela deixava o banheiro, estava imundo, à exceção do vaso, que nunca era utilizado. Comia com as mãos, dormia no chão: era impossível demovê-la do hábito. Não conseguia se sentar na cadeira, nem dizer as palavras mais simples. Não conseguia que a chamasse de mamãe de maneira alguma. Qual a dificuldade de balbuciar ma-mãe? Ainda assim, não conseguia… Um dia, finalmente entendeu que se chamava Zoeh, e tratou de logo lhe mudar o nome: talvez assim as coisas fossem mais fáceis. Batizou-a Maria, como a mãe de Deus, e ao lado dela todos os dias rezava o terço, esperando que, pelo nome e imitação, o Espírito a alcançasse. A incansável compaixão, da qual se orgulhava, parecia testada ao limite com aquela única conversão, mas não desistiria… Deus era testemunha da imensa dificuldade daquela única conversão…

Conseguiu pequenos progressos, modestos diante dos seus planos, mas que a encorajavam. Em algumas semanas, a filhinha aprendeu a usar o banheiro e a comer, ainda que de cócoras e usando apenas o garfo. Continuava dormindo e acordando muito cedo e preferindo o chão, porém já se aprontava para as orações, parando ao seu lado, mantendo as mãos em palma, fechando os olhos enquanto as Ave-Maria e os Pai-Nosso ressoavam pelo cômodo. Não a deixava sair, jamais, mesmo porque as roupas eram uma barreira difícil de ser vencida: uma simples calcinha, uma camiseta larga incomodava-a horrivelmente. E nem se podia falar em sapatos! Eram modestos os progressos, animados por nada além da fé que renovava a cada dia com fervorosas orações, sempre intensas, nas quais pedia que a filha Maria aceitasse Deus em seu coração. Era o centro de tudo, o guardião de nomes podia entender? Parecia-lhe que todas as crianças às quais ensinara as orações, todas as bandeirinhas que costurara para festas de sucesso, os jejuns, as novenas, os recordes de rifas vendidas, os grupos organizados de senhoras nada valiam se não conseguisse salvar aquela alma. Aquela alminha. Entendia agora o episódio do Cristo com o diabo no deserto: tentava-a declarar que, se a filhinha resistia, deveria voltar à aldeia. Queria declarar que fizera o seu melhor e que a decisão cabia à moça. Sabia, porém, que estas ideias não provinham de si: era o outro quem pedia que desistisse. Ela era a incansável compaixão.

Arranjou as coisas para a partida definitiva, crente de que a proximidade da selva prejudicava o projeto. Pediu ao marido ordem de pagamento, combinou com o motorista a viagem até a cidade natal na caminhonete e pelas mesmas estradas secundárias, abandonando o ônibus e demais membros da missão. Ajeitando uma trouxa com o pouco que ali havia, explicou para a filha Maria que fariam uma grande viagem, uma viagem definitiva, e que precisavam rezar mais do que nunca, rezar até doerem os joelhos para que tudo corresse bem. Movia-a a incansável compaixão, sentimento sem lugar no mundo: o motorista cobrou caro e a alertou que poderiam ser acusados de sequestro. As pessoas não entendiam… Era sua filha, sua filha Maria, e a resgatava da barbárie. O que uma mãe não faz por uma filha? As mães são sagradas, só as mães. A filha, a filhinha Maria, tinha só quatorze anos: sonhava levá-la para casa e organizar um baile para o aniversário seguinte. Um belo vestido, as quinze valsas… Antes, precisava convencer a filha a usar uma única peça de roupa, mas, como mãe, sonhava.

Quando recebeu o aviso da disponibilidade da ordem de pagamento, agradeceu ao sagrado efusivamente. Pediu à filhinha que estivesse quieta no quarto por no máximo uma hora. Explicou-lhe com gestos e palavras doces, como se falasse com um bebê, que a mamãe já voltava, que deveria aguardá-la de joelhos, rezando à Nossa Senhora dos Navegantes para que tivessem uma boa viagem. Fechou a porta delicadamente, olhando-a até o limite da fresta, uma anjinha, toda nua, com as mãos em súplica e olhos fechados, de joelhos. Voltou-se então e acelerou os passos, decidida a cumprir as obrigações e retornar o mais depressa possível, temerosa de que a filha se machucasse ou chorasse, pois era a primeira vez em que ficava sozinha.

Pelas ruas da pequena cidade, na fila do banco, enquanto pagava o motorista e comprava os mantimentos para a longa viagem, rezava, repetindo o Pai-Nosso, a Ave-Maria e canções religiosas para pedir que o Senhor guardasse a filha sozinha, tão próxima a partida e salvação daquela alma, que a guardasse só mais alguns minutinhos, pois logo estaria de volta.

Quando retornou, percebeu algo no olhar do recepcionista, e sentiu o coração acelerar. Subiu as escadas mais depressa do que os joelhos permitiam, ofegante, desesperada. O segundo a mais pelo qual o recepcionista a encarou indicou que as orações não haviam bastado. Encontrou a porta do quarto escancarada: as pernas perderam força. Quando cruzou o pórtico, ofendeu-a o quarto completamente destruído: roupas e cortinas rasgadas, o rádio esmigalhado contra a parede, fezes e urina por todos os lados, a mala atirada da janela para o pátio interno, o vaso sanitário quebrado — como tivera forças?! —, pedaços da Bíblia Sagrada rasgados a flutuar em meio àquele cenário apocalíptico. Nenhum sinal da filha. Sentiu a pele gelada, a respiração falhar, e depois disso, mais nada… Acordou com o recepcionista a abaná-la, chamando-a enquanto ela balbuciava, sem que fosse entendida, “filhinha, filhinha”, sofrendo aquela perda como nenhuma outra em sua vida.

— Minha filhinha… Ainda posso vê-la ali, rezando com as mãos juntinhas, um anjinho que Deus me deu para criar e deixei escapar…

O motorista a ajudou a organizar o quarto e resgatar o que era possível. Negociou a reparação com o dono da pensão e a levou até o ponto de apoio, a vila nas franjas da selva. Lá, os missionários a acolheram, sempre tão gentis, e choraram junto dela ao escutarem a narrativa da aventura. Fizera todo o possível para salvar aquela alma, mas havia o livre arbítrio, diziam tentando consolá-la. Não era para ser, devia confiar nos caminhos de Deus, repetiam para ela, que mecanicamente acompanhava as missas e novenas, perguntando-se incessantemente onde errara, se forçara demais em algum ponto, condenando-se por ter deixado a filha sozinha. Estava tão perto… Era só tê-la levado consigo…

Da selva, chegavam notícias: a índia Zoeh, a bruxa Zoeh, organizava pajelanças. Substituíra o feiticeiro após a varíola que o incapacitou e tomou para si mais dois maridos quando as respectivas esposas morreram. Conduzira os sobreviventes do grupo para a floresta profunda, onde habitavam as feras, conclamando-os a encontrar o ancestral comum — aquele que lhes ensinara quais frutos podiam comer — e a viverem próximo dele. Vigiava com rigor o cumprimento das tradições, desenterrava os mortos para lhes comer as carnes, iniciava os meninos deixando-os com as mãos dentro do formigueiro. Proibiu a tribo de se aproximar de qualquer branco, de efetuar qualquer troca, de avistá-los sem perseguir e matar. Dos mateiros que partiram em seu encalço, voltou apenas um, sem as orelhas, o nariz cortado fora com uma faca de pedra, a razão perdida para sempre. Assustados, os missionários insistiam em abandonar o projeto, em retornar antes que fossem atacados, temendo que uma investida estivesse sendo organizada. Orando, resistiu o quanto pôde. Por fim, desistiu, e retornou com os missionários, nunca em toda sua vida tão infeliz, a chorar por sua filhinha, sua anjinha que fugira.

Quando de volta à cidade, à casa, capela, marido e filhos, fez o que pôde para retomar as atividades com a mesma paixão e intensidade anteriores, mas dentro de si algo estava partido. Confessou suas dores ao padre, chorou abraçada ao diácono, pediu que as senhoras do grupo de oração dedicassem-lhe uma Ave Maria todas as noites. Jejuou, embora preocupasse a todos com a perda de peso. Prometeu à Santa caminhar mil quilômetros caso a filhinha voltasse, mas não foi ouvida. Numa manhã, já desenganada, veio-lhe a ideia de procurar o guardião de nomes, e a primeira reação foi fazer o sinal da cruz. Não poderia! Jamais se perderia em heresia! Que o nomeador não a julgasse mal, mas havia histórias sobre ele que a assombravam, por certo sabia do que se tratava. A incansável compaixão, contudo, era maior do que o temor: eis quem era e o que a sustentava. Para salvar a filha, estava disposta a tudo, inclusive a pecar. Finalmente juntou as mãos e suplicou ao guardião de nomes, esclarecendo o motivo da visita:

— Preciso que o senhor escreva neste livro o nome da minha filhinha, registre o nome cristão dela. É minha última esperança para que ela volte para casa, para a cristandade, para mim… — com o dorso da mão secou os olhos e um instante depois retomou a súplica — Por favor…

O guardião de nomes olhou-a demoradamente, a ponta de um dos lábios discretamente erguida. Alisou a folha corrente do enorme livro, apanhou com naturalidade a caneta tinteiro, posicionou a mão a fim de grafar o nome, certo, inequívoco. Acompanhando-lhe o movimento com os olhos, a senhora sorria sem exibir os dentes, satisfeita, agradecida pelo sucesso no diálogo com o bruxo. De súbito, porém, a expressão desmanchou-se, fez-se aterrorizada: não grafara no livro o nome cristão, o nome que ela mesma escolhera para a filha, mas o nome indígena! O desgraçado escrevera Zoeh no livro de registros, ao invés do nome certo! Como fora capaz?! Era muito atrevimento, era zombar de seus sentimentos maternos! Era desprezar todo esforço dela para salvar a filha, e condená-la a viver para sempre perdida nas profundezas da selva!

Ergueu os olhos e o indicador, pronta para protestar, respirando fortemente, mas encontrou o guardião de nomes a encará-la fixamente, ainda com a caneta na mão. Sentiu um vazio no estômago: e se roubasse seu nome? Levantou-se apressadamente e fugiu da casa, fazendo o caminho de volta entre resmungos e lágrimas pela filha perdida para sempre. Reparou que deixara cair o terço de madeira: que lá ficasse como uma resposta ao bruxo.

Sozinho, o guardião de nomes observou o nome da índia recém-grafado, e o acariciou, delicadamente, depois de ter certeza de que a tinta secara. Então, fechou o enorme livro.

 

Fragmento do romance O Guardião de Nomes

 

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Foto: Igreja da Imaculada Conceição, Curitibanos, Brazil, de Mateus Campos Felipe, Unsplash.
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Professor Pulquério https://latinamericanliteraturetoday.org/es/2023/09/professor-pulquerio/ https://latinamericanliteraturetoday.org/es/2023/09/professor-pulquerio/#respond Sun, 17 Sep 2023 07:02:34 +0000 https://latinamericanliteraturetoday.org/?p=26370 Nota del editor: Este texto está disponible en portugués e inglés. Haz click en “English” para leer en inglés.


Quando eu era menino e morava numa vila do interior, assisti a um episódio bastante estranho, envolvendo um professor e sua família. Embora sejam passados muitos anos, tenho ainda vivos na memória os detalhes do acontecimento, ou pelo menos aqueles que mais me impressionaram; e como ninguém mais que viveu ali naquele período parece se lembrar, muitos chegando mesmo a duvidar que tais coisas tenham acontecido—a própria filha do professor, que vi aflita correndo de um lado para o outro chorando e pedindo socorro, quando lhe falei no assunto há uns dois ou três anos olhou-me espantada e jurou que não se lembrava de nada—resolvi pôr por escrito tudo o que ainda me lembro, antes que a minha memória também comece a falhar. Se o meu testemunho cair um dia nas mãos de algum investigador pachorrento, é possível que aquela ocorrência já tão antiga e, pelo que vejo, também completamente esquecida, exceto por mim, seja afinal desenterrada, debatida e esclarecida.

Naturalmente minhas esperanças são muito precárias; conto apenas com a colaboração do acaso e, como sabemos, se a história é rica de triunfos devidos unicamente ao acaso, também está cheia de derrotas só explicáveis pela interferência desse fator imprevisível. Assim, vou fazer como o viajante que encontra um pássaro ferido na estrada, coloca-o em cima de um toco e segue o seu caminho. Se o pássaro aprumar e voar de novo, estará salvo—embora o viajante não esteja ali para ver: se morrer, já estava de qualquer forma condenado. 

Esse professor de quem falo era um homem magro e triste, morava em uma casa de arrabalde de chão batido. Fora professor em outros tempos, antes da criação do grupo escolar servido por normalistas. Para sustentar a mulher e os vários filhos ele não apalpava serviços: vendia frangos e ovos, trançava rédeas de sedenho, cobrava contas encruadas, procurava animas desaparecidos, e vez por outra matava um porco ou retalhava uma vaca. Vendo-o desdobrar-se em tantas e tão variadas atividades, era difícil compreender como ainda conseguia tempo para escrever artigos históricos para o jornalzinho de Pouso de Serra Acima, localidade a doze léguas de nossa vila para o sul. A bem da verdade devo dizer que seus artigos nunca davam o que falar. Sabia-se vagamente que ele escrevia, mas pouca gente se dava ao trabalho de ver o que era. Também nunca se incomodou com a indiferença do público, nem nunca deixou de mandar a sua colaboração sempre que um assunto o entusiasmava. Pulquério se chamava esse homem esforçado.

De vez em quando eu encontrava um número do jornalzinho de Serra Acima rolando lá por casa, mas confesso que nunca li um artigo do professor Pulquério até o fim; achava-os maçantes, cheios de datas e nomes de padres, parece que a fonte principal de sua erudição eram as monografias de um frei Santiago de Alarcón, dominicano que estudara a história de nosso estado e publicara seus trabalhos numa tipografia de Toledo. Meu pai guardava alguns desses folhetos, que me lembro de ter manuseado sem grande interesse.

Não obstante a falta de interesse por seus artigos, o professor Pulquério ficou sendo o consultor histórico da vila. Sempre que alguém queria saber a origem de um prédio, de um estrada velha, de uma família, era só consultá-lo que dificilmente ficaria na ignorância. Eu mesmo, que nunca me interessei por esses assuntos, sentia-me descansado ao pensar que sempre o teria ali à mão caso houvesse necessidade. E sem lhe dar muita atenção, por causa de sua prolixidade e de sua lentidão no falar, eu o tratava com deferência para não correr o risco de ser repelido quando precisasse dele. Quando o encontrava na rua, ou no armazém do meu tio Lucílio, eu perguntava pela família, ou pelos negócios, e evitava falar em história, porque se cometesse a imprudência de falar em seu assunto favorito teria que perder muito tempo ouvindo uma longa explicação naquela voz preguiçosa.

Um dia ele estragou o meu truque perguntando-me de chofre, logo após os cumprimentos habituais, se eu conhecia a história do tesouro do austríaco. Era preciso muita tática para responder. Se eu dissesse que conhecia, pensando abreviar a conversa, o tiro poderia sair pela culatra; ele haveria de querer comparar os meus dados com os dele, e a minha ignorância denunciaria a minha intenção; se dissesse que não conhecia, teria que ouvi-la do princípio ao fim, com todos os afluentes.

—Vejo que não sabe— disse ele. —Aliás não é de admirar, porque a mocidade de hoje não perde tempo com o passado. Mas não pense que estou censurando. É um fenômeno facilmente constatável, aqui e em toda parte. As causas são inúmeras. Em primeiro lugar…

Nesse ponto ele deve ter notado algum sinal de impaciência em mim, porque deteve-se e desculpou-se:

—Desculpe a minha divagação. Eu queria falar do tesouro do austríaco, e já ia me enfiando por outro caminho. Se você quiser ouvir a história, vamos ali ao armazém de seu tio. É assunto fascinante para um jovem. Quem sabe você não se anima a ir buscar o tesouro? Ficaria rico para o resto da vida!

Sentado num saco de feijão no fundo do armazém, o professor Pulquério falou-me de um tesouro incalculável que estaria enterrado na crista de um dos nossos morros. Eram sacos e mais sacos de ouro enterrados na própria mina por um engenheiro austríaco que a explorava secretamente. O filão era tão rico que ele mandara chamar um filho na Áustria para ajudá-lo. Quando o rapaz chegou, anos depois devido às dificuldades de comunicação, e surgiu de repente em cima do barranco, o pai matou-o com um tiro julgando tratar-se de algum assaltante. Verificado o engano, o engenheiro resolveu dar ao filho o túmulo mais rico do mundo: enterrou-o na mina com todo o ouro já extraído e deixou um roteiro propositalmente complicado. O professor conseguira o roteiro e agora procurava localizar a mina. Impressionava-o a frase final do roteiro, depois de muitos circunlóquios e pistas falsas: “Chegando nessas alturas, procure da cinta para a cabeça que encontrará ouro grosso e riqueza nunca vista.”

Mas ninguém deve supor que o professor Pulquério fosse homem ambicioso. Ele não queria ficar com todo o tesouro, estava pronto a dividi-lo com quantos quisessem participar da busca, e até achava que quanto mais gente melhor.

Existiria mesmo o tal tesouro? Parece que o povo não estava acreditando muito. A nossa febre do ouro havia passado, deixando todos com a sensação de logro. Quase não havia na vila e imediações um curral velho, um pedaço de alicerce, um moirão de aroeira no meio de um pátio, que não tivesse sido tomado como apelo mudo de um tesouro. Cavoucado o lugar e revolvida a terra, o único resultado positivo eram os calos nas mãos do cavouqueiro. O povo andava muito desinteressado de tesouros quando o professor apareceu com o seu roteiro.

A mania do tesouro poderia ter passado com o tempo, sem gerar transtorno, se a linguagem enigmática do roteiro não tivesse fascinado o professor. Ele passava tardes ou manhãs inteiras no armazém de meu tio, atrapalhando o serviço e os fregueses, revolvendo mentalmente o roteiro, procurando penetrar no sentido oculto das frases, descuidando de suas obrigações. Muitas vezes a mulher precisava mandar um dos meninos buscá-lo para atender a algum negócio que não podia esperar, ou pedir dinheiro para alguma despesa urgente. Mas devo dizer que o professor era interrompido em suas meditações, e até pedia a meu tio que fornecesse umas balas ao garoto para pagar depois. 

Enquanto ele se limitou a falar no roteiro e nas investigações que estava fazendo para localizar a mina, não tínhamos motivo de queixa. Era uma nova mania inofensiva, até servia para desviar-lhe a cabeça de seus problemas domésticos. Gostávamos de vê-lo fazer cálculos sobre o número de sacos de ouro que devia haver na mina, tomando por base o tempo que o austríaco trabalhou sozinho, a quantidade de cascalho que um homem pode batear em um dia, e o teor de ouro que devia haver em cada bateada. Depois vinham os cálculos do número de pessoas que seria necessário para desenterrar o tesouro no menor prazo possível, a quantidade e o tipo de ferramenta, por fim o número de burros para transportar a carga morro abaixo. O professor tinha tudo muito bem calculado.

Ele queria que todos os habitantes da vila, ou o maior número possível, contribuíssem para as despesas, e o tesouro seria repartido proporcionalmente às contribuições, depois de deduzida uma percentagem para ele como organizador dos trabalhos. Embora todos achassem o esquema razoável, as contribuições nunca se materializaram. Uns diziam que esperasse mais para diante, outros que estavam aguardando um pagamento, outros que iam pensar. Seria por descrença no êxito da expedição, ou dúvida quanto à honestidade do professor? Parece que ele optou pela segunda hipótese, e naturalmente sentiu-se muito ofendido. E como já estávamos cansados de ouvi-lo, sempre arranjávamos uma desculpa para fugir dele, muitos nem iam mais ao armazém para não encontrá-lo.

Depois de inúmeras tentativas de explicar a um e outro a lisura de seu projeto, o professor resolveu fazê-lo por escrito com um memorial em quatro folhas abertas de papel-almoço—“Aos cidadãos honestos desta vila”—pregadas na porta da cadeia.

Não creio que muitas pessoas tenham lido o memorial. Tentei lê-lo por mera curiosidade, e também por uma espécie de reparação ao professor; mas quando cheguei ao fim da primeira banda e vi que faltavam sete, numa letra fina e sem parágrafos, resolvi fazer uma cruz a lápis no ponto onde havia parado e deixar o resto para ler depois. Mas esse dia nunca chegou, porque a meninada estragou o memorial, fazendo garatujas a carvão por cima do escrito e mesmo rasgando o papel em vários pontos. Foi outro golpe para o professor, que cismou que o vandalismo infantil tinha sido dirigido pelos pais.

Não obtendo atenção entre os particulares, o professor tentou interessar a Intendência—mas também aí não foi feliz. Parece que uma praga muito forte condenava o tesouro a jamais sair da crista do morro. Sendo homem sem delicadeza, mais afeito a lidar com animais do que com gente—uma vez entortou com um murro o pescoço de uma égua que o mordera na hora de apertar a barrigueira—o intendente nem quis ouvir a proposta, e riu na cara do professor na frente das outras pessoas. Dizem que o professor saiu da Intendência com lágrimas nos olhos, o que não seria de estranhar em um homem do seu temperamento.

Dava pena vê-lo nas ruas, cada vez mais magro, trancado em si mesmo, sem ter com quem conversar. Achei que estávamos sendo maldosos demais com ele, e pensei em fazer alguma coisa, se não para ajudá-lo ao menos para distraí-lo. Foi então que vi o quanto a nossa indiferença o havia afetado. Quando tentei falar com ele na rua, ele lançou-me um olhar ressentido e continuou o seu caminho. Não me sentindo isento de culpa, resolvi engolir o orgulho e procurá-lo em sua casa à noite. Atendeu-me a mulher, d. Venira, com as mãos suas de massa do bolo de arroz que estava fazendo para ser vendido em tabuleiro de manhã bem cedo, a tempo de alcançar o café da vila. Pelo embaraço de d. Venira percebi que o meu nome fora referido naquela casa, e não favoravelmente.

—Pupu está escrevendo— disse ela por fim. —Não sei se ele…

Ouvi o professor chamá-la da varanda, de onde o lampião lançava sombras desproporcionadas no corredor. Teria ele ouvido a minha voz, ou fora coincidência? Da porta eu via a sombra de d. Venira argumentando, agitando os braços, e até mexendo o queixo: mas falavam baixo, e nada pude ouvir.

Dona Venira voltou encabulada e pediu mil desculpas em nome do marido, disse que ele não podia ver-me aquela noite. Estava escrevendo uma exposição ao presidente do estado. (Quando ela mencionou a exposição ao presidente, notei uma entonação diferente em sua voz, mas fiquei sem saber se ela estava zombando da ingenuidade do marido ou querendo impressionar-me, como se dissesse “Agora espere o resultado”.)

Após esse tratamento eu podia abrir a boca contra o professor sem ser acusado de injusto, mas preferi não contar a ninguém a novidade da exposição ao presidente; eu ainda tinha uma certa simpatia pelo pobre homem e não queria vê-lo em ridículo.

Para despachar a exposição o professor teve a cautela de pretextar uma viagem à vila vizinha, com certeza receando alguma molecagem do nosso agente postal. Foi por isso que ninguém soube explicar o motivo do nervosismo que tomou conta dele naquela época. Não se demorava mais em parte alguma, nem no armazém. Entrava, cheirava a ponta do rolo de fumo em cima do balcão, esfregava na mão um punhado de cereal de algum saco que estivesse perto, jogava uns grãos na boca, sem notar o que estava fazendo, pedia para ver uma coisa ou outra, e antes que meu tio o atendesse ele cancelava o pedido e saía apressado. No mercado era a mesma coisa, e em casa deu para descarregar a impaciência nos meninos. Onde ele se demorava era na agência do correio, com certeza para vigiar a abertura das malas.

Evidentemente o professor nada sabia dos caminhos da burocracia. Com certeza imaginava que a sua exposição seria recebida pessoalmente pelo presidente, lida no mesmo dia, ou o mais tardar no dia seguinte, e uma resposta redigida imediatamente em papel oficial, intimando-o a tocar para a frente com a expedição, com poderes para entrar na Coletoria e requisitar a verba necessária, enquanto nós, os descrentes, ficaríamos olhando admirados e envergonhados, doidos para ser incluídos na expedição, nem que fosse como cargueiros.

Em vez de enfraquecer-lhe a esperança, parece que a demora deu ao professor mais disposição para agir. Depois de alguns dias de espera ele passou um longo telegrama ao presidente, chamando-lhe respeitosamente a atenção para a exposição e pedindo resposta urgente.

Quando a resposta chegou, o telegrafista foi levá-la pessoalmente, mas não encontrou o professor em casa. A mulher também tinha ido entregar costura em casa de uma freguesa. O telegrafista voltou à cidade, nessa altura acompanhado por um bando de curiosos. Passaram no mercado, no armazém, na farmácia, mas ninguém tinha visto o professor. Por fim um menino que passava puxando um cargueiro de lenha informou que ele estava na beira do rio pelando um porco. Corremos para lá, aquele bando de gente entupindo as ruas, pisando os pés uns dos outros, atraindo mulheres às janelas.

O professor estava de chapéu de palha de roceiro e roupa velha remendada, atiçando fogo debaixo de uma lata de água. Um dos meninos mais velhos saía de um matinho com uma braçada de gravetos. Ao ver o telegrafista o professor largou o fogo, saltou por cima do porco já morto no chão e avançou limpando as mãos na calça.

Mas a resposta estava longe de ser a que ele esperava (naturalmente já sabíamos, só queríamos ver como ele recebia o telegrama). A mensagem, assinada por um secretário, dizia apenas que Sua Excelência ainda não tinha estudado a exposição, mas prometia uma decisão logo que ela lhe chegasse às mãos acompanhada dos indispensáveis pareceres.

Deixando cair o papel no capim sujo de sangue, o professor sentou-se em cima do porco e começou a chorar, como se de repente tivesse percebido a realidade. Desconcertados com essa reação que não esperávamos, afastmo-nos em pequenos grupos e voltamos calados para a cidade, ninguém teve coragem de falar no choro do professor. Não sei se estávamos envergonhados por ele ou por nós mesmos.

A situação agora havia se invertido. Todos procuravam conversar com o professor, distraí-lo de sua mágoa, mas ele não queria falar com ninguém. Pelo hábito ainda frequentava o armazém, mas ficava sentado olhando para o chão e coçando os ouvidos com paviozinhos de papel que torcia meticulosamente, como se fosse um trabalho de muita importância.

Mas, se nós o conhecêssemos de verdade, teríamos sabido que ele ainda esperava. Ele havia apenas dado um prazo às autoridades, e estava aguardando que o prazo se esgotasse para tomar nova providência. Tanto que, numa segunda-feira de manhã, entrou de cabeça erguida na agência do telégrafo e mandou nova mensagem ao presidente, comunicando que às dez horas iniciaria um protesto público contra o descaso oficial. A notícia espalhou-se depressa, e toda a vila passou a vigiá-lo de longe. Do telégrafo ele foi ao armazém e comprou rapadura, farinha, carne-seca, fumo, palha, um maço de fósforos, um rolo de corda grossa. Se a corda sugeria desatino, os outros itens nos tranquilizavam. Vimos quando ele saiu do armazém, atravessou o largo, entrou no beco do sapateiro e tomou o rumo de casa. Nesse ponto praticamente toda a população o acompanhava à distância. Meninos iam e vinham correndo, em busca de informação para as mães que haviam ficado com panelas no fogo em casa.

O professor entrou em casa com o saco das compras e logo apareceu à janela, onde ficou debruçado fumando tranquilamente, enquanto na rua a multidão crescia de minuto a minuto. O povo já estava ficando impaciente, mas o professor parecia o homem mais calmo do mundo. Tinha o seu plano e não ia apressá-lo para agradar a assistência.

Quando o relógio da cadeia bateu as dez horas, ele veio à porta e convidou o povo a entrar para o quintal, haveria espaço para todos, só pedia que não estragassem as plantas de d. Venira. Como o corredor era estreito, e todos queriam entrar ao mesmo tempo, houve empurrões, pés pisados, palavrões, tumulto. Gente entrava pelas janelas, estragando a parede com o bico das botinas, outros pulavam o muro, cortando-se nos cacos de vidro. Num instante escangalharam a porta do corredor de tanto se espremerem contra ela.

No quintal havia uma cisterna seca tapada com uma porta velha, com enorme bloco de pedra em cima. O professor pediu que o ajudassem a afastar a pedra, retirou a porta para um lado e amarrou uma ponta da corda na pedra. Até aí nenhuma suspeita do que ele pretendia fazer. Depois de verificar se o nó estava firme ele despediu-se da mulher e dos filhos, todos de roupa nova e cabelo penteado com brilhantina, e sem mais aquela escorregou pela corda até o funda da cisterna. De lá ia gritando para a mulher:

—Rapadura.

—Farinha.

—Palha e fumo.

—Carne. 

Dona Venira ainda lhe jogou a mais um cachecol e um guarda-chuva, recomendando-lhe que se agasalhasse bem à noite. O povo correu para a beira do poço, e o primeiro que chegou, com a pressa com que ia, teve que saltar por cima para não cair no buraco. Tive vontade de ver se o professor estava em pé, sentado ou agachado no fundo do poço, mas não consegui uma brecha para olhar.

Todas as manhãs d. Venira escrevia numa lousa escolar, pendurada numa estaca ao lado do poço, o número de dias que o marido havia cumprido lá dentro. O quintal ficava permanentemente cheio de gente, como se aquilo fosse um piquenique ou um pouso de folia. Até cestos de comida levavam, à noite acendiam fogueira, assavam batatas, duas meninas filhas do professor cantavam para distrair o povo, d. Venira aproveitou para armar uma barraquinha para vender refrescos e bolos.

Essa romaria já durava mais de uma semana quando o delegado achou que já chegava e intimou o professor a subir. O professor respondeu que estava exercendo o direito de protesto, e que continuaria protestando até alcançar o seu objetivo. O delegado respondeu que aquilo não era protesto, era uma palhaçada, e deu uma hora de prazo para ser atendido por bem. A única resposta do professor foi uma gargalhada confiante.

A curiosidade agora era saber de que maneira o delegado ia retirar o professor de dentro do poço caso ele teimasse em não sair. De todos os lados partiam sugestões, uns achavam que a melhor solução seria despejar baldes de água na cisterna—alguém falou em água quente—outros que o mais indicado nesses casos seriam tochas embebidas em querosene; e um camarada baixinho, de olhinhos vivos de coelho, recomendou que se tapasse a cisterna com a porta e se metesse fumaça para dentro, como se faz para tirar tatu da toca. Ouvindo isso uma das filhas do professor, menina de seus doze a quatorze anos, começou a correr de um lado para outro, chorando e pedindo piedade, mas ninguém se comovia; todos estavam ali para ver alguma coisa fora do comum, e não haviam de querer estragar o desfecho com um gesto de piedade fora de hora.

Mas o delegado já tinha o seu plano e não precisava de sugestão de ninguém; ele apenas esperava que o prazo se esgotasse para tomar suas providências—e talvez até desejasse no íntimo que a ordem fosse desobedecida, para ter uma ocasião de impor dramaticamente a sua autoridade. Quando consultou o relógio e disse que os sessenta minutos já haviam passado, a multidão automaticamente abriu um corredor entre ele e o poço, com certeza esperando que ele fosse descer pela corda e trazer o professor nas costas. Mas em vez de caminhar na direção do poço ele caminhou na direção da casa! Ninguém entendia mais nada. Então ele estava apenas brincando quando fez a intimação? E claro que o desapontamento do povo não vinha de nenhum desejo de preservar a autoridade, mas do receio de perder algum espetáculo, sensacional ou engraçado.

Quando o delegado voltou de sua caleche trazendo uma enorme casa de marimbondos na ponta de um galho de abacateiro, o povo criou alma nova. Era a prova de que uma autoridade experience pensa melhor do que cem curiosos. Andando devagarinho para não balançar o galho, o delegado chegou à beira do poço e sem mais nenhum aviso soltou lá dentro o galho com os marimbondos.

Naturalmente todos esperavam que o professor subisse do poço como um foguete e saísse desatinado pelo quintal, pulando e dando tapas por todos os lados—mas nada aconteceu, nem um grito se ouviu. Olhávamos uns para os outros espantados, como se na cara dos conhecidos pudéssemos encontrar a explicação. Por fim aqueles de mais iniciativa foram na ponta dos pés espiar dentro do poço—e quando contaram o que viram ninguém acreditou, foi preciso que a multidão inteira fizesse fila para ver com os próprios olhos.

Dentro do poço só se via o galho de abacateiro engarranchado numa pedra e umas cascas de queijo que os marimbondos atacavam.

Fomos todos para casa de cabeça baixa, sentindo-nos vilmente logrados.

Conto do livro Os cavalinhos de Platiplanto (1959)

Foto: Nayani Teixeira, Unsplash.
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Trechos do Jornal da Guerra Contra os Taedos https://latinamericanliteraturetoday.org/es/2023/09/trechos-do-jornal-da-guerra-contra-os-taedos/ https://latinamericanliteraturetoday.org/es/2023/09/trechos-do-jornal-da-guerra-contra-os-taedos/#respond Sun, 17 Sep 2023 07:01:05 +0000 https://latinamericanliteraturetoday.org/?p=26361 Nota del Editor: Presentamos este texto en el portugués original y en traducción al inglés. Desplázate hacia abajo para leer en portugués, y haz click aquí para leer en inglés.


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Resumindo: foi a Guerra dos filhos da luz contra os filhos das trevas, ambos filhos da puta. 

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Depoimento de um historiador do ministério da propaganda dos taedos: Fiz confusão na hora de contar, contei diferente de como tinha acontecido. Fiz confusão, troquei dois nomes, uma data e um cenário, contei diferente de como tinha acontecido troquei um nome, duas datas e dois cenários, fiz confusão, misturei algumas coisas, troquei um nome por uma data e um cenário por uma frase. Eu prometo que não vou repetir a confusão. Vou presta atenção para, quando contar, dizer exatamente como foi que aconteceu. Quer dizer, prometer mesmo eu prefiro não prometer, chega na hora e me vem uma palavra melhor e eu acabo contanto diferente, eu prometo mesmo é trocar pouca coisa, uns dois nomes sem importância, uma data menor, um cenário pequeno, prometo trocar pouca coisa. Mas é melhor não prometer nem isto Um dos historiadores do nosso ministério da propaganda tem um depoimento muito parecido, as única diferenças são dois nomes, uma data e um cenário.

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A guerra contra os taedos foi bem recebida por nós porque eles eram nossos vizinhos. Atrás do aparente paradoxo, paradoxo porque tem gente que cultiva a vizinhança, chega a convidar para o churrasco, atrás do aparente paradoxo havia uma grande estratégia de guerra. Levantamentos sociológicos sobre a época revelaram que existia a ideia de vizinho ser o ideal de inimigo. A vizinhança, com sua óbvia proximidade, era um alvo com evidente vantagem para a nossa pontaria. O que chegou a ser chamado de ideia preguiçosa. Mas então os levantamentos sociológicos foram substituídos pelos levantamentos bélicos e descobriu-se que a proximidade era boa no quesito pontaria também para o nosso inimigo. O que serviu para mostrar que considerar o vizinho ideal de inimigo não é uma ideia preguiçosa, é outro tipo de ideia. 

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Um herói não descansa enquanto ainda houver no peito espaço para uma medalha. Funcionou tão bem que fomos obrigados a fazer uma atualização: Um herói não descansa nem quando no peito não já mais espaço para uma medalha, porque são possíveis medalhas sobrepostas. 

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Um fabricante de armas taedo estava produzindo mais do que seu exército necessitava, procurou o nosso exército para tentar empurrar o excedente, fizemos um bom negócio com ele. Compramos o excedente com a condição de que 20% das armas que ele vendia para os taedos tivessem defeito de fabricação. Ele se entusiasmou tanto com a ideia que propôs 25%.

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Governantes de vários países se apresentaram como mediadores na tentativa de acabar a guerra contra os taedos. Um deles, não me lembro se inglês ou francês, mas com forte sotaque alemão ou japonês, conseguiu reunir representantes nossos e dos taedos numa conversação de paz. Mas as discussões sobre a forma de realizar as reuniões adiaram o início das negociações. O debate sobre o formato da mesa durou sete anos. A altura do espaldar das cadeiras, outro tanto. Vários anos para decidir quem ficaria sentado perto da janela. Foi tamanha a demora que, quando a conversação de paz começou, a guerra tinha terminado e se pensou que era hora de começar outra, já que a paz estava próxima porque as negociações haviam sido iniciadas. Não me recordo qual das guerras era aquela. Tivemos nove guerras contra os taedos – o mesmo número de sinfonias de Beethoven. Aboli a informação de que foram nove guerras, eu vou contanto como se fosse uma só. Uma dá trabalho, imagine nove. Beethoven não pensou nisso. 

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Uma boa parte da história da guerra foi escrita antes da guerra. Ninguém era louco, nem nós nem os taedos, de começar a guerra sem algumas precauções. 

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Faça de conta que isso é um filme, que isto não está acontecendo com você. Este argumento deixou a guerra mais amena para muita gente. Aquela bomba ali na esquina era um filme, o vizinho da esquina com a tevê num volume excessivamente alto. Os parentes e amigos mortos eram atores que saíram de cena e depois da guerra voltariam em outros filmes. Teria dado trabalho depois da guerra, mas aí foi só fazer de conta que não tinha nada com isso. 

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Como a guerra começou? Isto perturbou os historiadores desde que a guerra começou. Eram muitas as histórias sobre o capítulo que provocou a declaração de guerra, uníssona, segundo alguns historiadores, uníssona, os dois lados em perfeito dueto: guerra!! (Para evitar novos conflitos, dois pontos de exclamação.) Mas os historiadores adeptos da história oficial resolveram a questão escolhendo um dos muitos episódios que teriam provocado a guerra, e passou a ser ele dogmaticamente a causa da guerra. Às vezes interessava dizer que fomos nós que começamos a guerra, às vezes não. Para quando interessava, adotamos que um general escorregou numa casca de banana e reconheceu entre as gargalhadas um sotaque taedo. 

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O nosso primeiro-ministro disse: É da essência da guerra ter mortos, mas estamos fazendo guerra tendo em vista a paz. Entretanto, são também muitos os mortos em tempos de paz, é da essência da paz ter mortos, porque quando estamos em paz sempre temos em vista a guerra. A rainha não gostou e mandou matar o redator de discursos do primeiro-ministro. 

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Os aliados são sempre um problema. Eles não entendem que a guerra não é deles. A função dos aliados é fornecer soldados, armas e dinheiro. E no fim da guerra, além de carregar a taça por alguns instantes, ter licença para liberar o saque para seus soldados, por exemplo, durante seis horas, e participar do processo de reconstrução, mas nada acima de 5%. O aliado é apenas um carona. Na guerra contra os taedos nós tivemos aliados que não entendiam o lugar deles. Um aliado chegou ao cúmulo de sugerir que deveria opinar sobre estratégia, alegando conhecimento bélico. E mandou uma lista dos volumes bélicos que havia na biblioteca nacional deles. Aliado é assim mesmo, acha que é importantíssimo, nem imagina que um dia pode virar inimigo. Aliado é um inimigo em potencial. Ficam aqueles problemas mal resolvidos dos tempos de aliança e eis aí bons motivos para começar uma guerra. Os taedos foram nossos aliados em várias guerras, antes e depois das guerras contra os taedos. 

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Os taedos inventaram uma joana d’arc e mandaram a menina para o front. No fim da guerra, ela voltou casada. Três filhos. 

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As televisões sempre tiveram um apreço muito grande pelas mães porque as imagens das mulheres expondo lágrimas pelos filhos mortos eram boas para separar blocos de reportagens sobre bombardeios, ataques, escaramuças, explosões, fuzilamentos, para baixar a tensão bélica e preparar o telespectador para o intervalo comercial. Mas foi assim apenas durante uma parte da guerra porque adotamos uma engenhosa solução – posteriormente copiada pelos taedos –; solução para evitar os danos que as choradeiras causavam. Danos seríssimos, pois as lágrimas começavam a convencer muita gente de que a guerra deveria acabar para que as mães não sofressem tanto. A solução foi bem simples, as mães também foram enviadas para a guerra. Elas passaram a guerrear, não tinham mais tempo para chorar a morte dos filhos, nem sabiam onde os filhos andavam. Houve até casos de filhos que ficaram em casa quando as mães foram para a guerra, segundo a televisão, reportagem exibida no final do bloco, na véspera do intervalo comercial. 

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Nós fazíamos fronteira com os taedos, isto garantia muita emoção durante a guerra. Emoção por conta de uma geografia variada na linha da fronteira. Estávamos separados dos taedos num ponto por um rio, no outro por montanhas e em mais outro por um mar interior, separados dos taedos por fronteiras definidas por estradas, cidades ou cercas de arame farpado, e também por países tão pequenos que era como se não houvesse nada entre nós e os taedos além da linha imaginária da fronteira – sem ofender aqueles países chamando-os de imaginários, não é hora de começar uma guerra por causa ditos. Mas a fronteira mais delicada com os taedos era a do deserto, em algum ponto da areia, não se sabia exatamente onde ficava. O deserto acabou servindo para alguns exercícios. Nós, por exemplo, ficamos muito tempo esperando que os taedos tentassem nos invadir pelo deserto. Esperamos a chegada deles, não chegaram, e por isso sempre que olhamos para o deserto, mesmo depois da guerra, ficamos imaginando que, como os taedos não vieram pelo deserto, talvez venham os tártaros. Estamos esperando os tártaros, e aproveitamos para esperar também os bárbaros, já que eles podem ser uma solução. Duas coisas ocupam o mesmo lugar no espaço de uma espera. Ou três. Estamos também à espera de Godot. 

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No nosso calendário cívico, o Dia da Vitória cai uma semana antes do Dia da Vitória do calendário cívico dos taedos. 

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Os oficiais tratavam os soldados como inimigos. Isto sempre deu certo. 

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Das guerras napoleônicas, a única influência é o galicismo no título. 

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Nós não fomos os primeiros a mudar a data de uma revolução. Muitas Histórias já fizeram isto. Mas nós mudamos por uma necessidade compreensível, facilitar a vida as crianças na escola quando abrissem o livro de História. A revolução havia sido em 11. Mas que falta de força histórica tem a expressão Revolução de 11. Ninguém pode negar que Revolução de 44 é mais forte, mais consistente, mais verdadeira. Nossos historiadores haviam testado 22 e 33, mas Revolução de 44 é a exclamação potente sem necessidade de ponto de exclamação, e ficou sendo 44. Esta história não tem taedos no elenco. É citada porque ela puxa uma outra história, esta sim com os taedos no habitual papel secundário. Mudamos a data da padroeira, Nossa Senhora de Tal, por um motivo ainda mais simples do que as necessidades históricas da Revolução de 44. A primeira aparição da Nossa Senhora de Tal havia sido no meio de uma reunião de ministros do governo, quando ela indicou algumas providências para o progresso do país. Uma das providências era acabar com os taedos para abrir novas perspectivas comerciais, tomar os negócios deles. A reunião ministerial com a aparição havia sido no dia 1 de abril, trocamos para 13 de agosto. Mas por que 13 de agosto? Também ideia da santa, oferecida ao presidente quando ele estava no banheiro, segundo a História, fazendo a barba. A santa disse 13 de agosto. Nunca houve qualquer dúvida quando à data porque, mesmo na emocionante situação de estar diante da aparição de Nossa Senhora de Tal, o presidente teve, no banheiro fazendo a barba, presença de espírito, autocontrole e compreensão da História para anotar a data no primeiro pedaço de papel que a mão dele alcançou. Isto está claro em todos os livros de História, menos a origem da caneta. Nossa Senhora de Tal nunca mais apareceu, nem para receber o soldo. 

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Uma chuva de granizo caiu somente do nosso lado e fez muitos estragos. Dois generais dos taedos queriam para si o crédito pela destruição. Um dizia que fez a dança da chuva e provocou o granizo. O outro alegava que pediu a chuva de granizo para Deus e foi atendido. Nós não ficamos sabendo como a história entre os generais acabou porque os taedos evitaram que os detalhes transpirassem. Só sei que um dos nossos principais generais usou o exemplo e fez as  duas coisas, dança da chuva e pedido a Deus, mas não foi atendido com granizo. Os taedos tiveram, porra, uma semana de sol. Muitos dos taedos que nós matamos estavam bronzeadíssimos.

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Nós demorarmos um pouco para entender. Os taedos começaram a construir pirâmides. Enlouqueceram, pensamos. Ou vão usar as pirâmides para lançar mísseis. Hoje, quando vamos fazer turismo nas pirâmides taedas, entendemos tudo e até temos uma ponta de orgulho. Aquelas magníficas pirâmides taedas foram construídas por nós. Pelos nossos soldados, prisioneiros de guerra dos taedos. Uma ponta de orgulho. 

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Convocação de covardes. Era uma boa maneira de aumentar as nossas tropas. Mas para que os covardes se alistassem foi necessária uma campanha para mostrar que a covardia era um caminho muito fácil para o heroísmo. Imobilizado, os únicos movimentos eram o bater de dentes, sujar as calças, chorar de medo e, sem coragem para sair do lugar, enfrentar o inimigo. Foram assim formados os batalhões de covardes, e a cena se repetiu: soldados imóveis de medo permaneceram no posto e acabaram enfrentando heroicamente o inimigo taedo. Há o registro de milhares de casos de heroísmo, mas nunca além do heroísmo moderado. 

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Apareceu um sujeito no nosso estado-maior oferecendo a cópia de um documento taedo com toda a tática bélica deles. Pediu muito dinheiro. O estado-maior disse que aquele era um assunto do serviço de espionagem. Este, diante do tamanho do preço, informou ao sujeito que compra de documentos secretos do inimigo era da alçada do ministério de guerra. O ministro foi o mais claro de todos. Disse que o ministério de guerra estava mal de finanças e mandou o sujeito vender a cópia do documento para o presidente ou o primeiro-ministro ou o rei ou a rainha, quem estivesse de plantão naquele dia. A história andou ainda um tanto, mas sem fechar negócio. O sujeito deve ter tocado fogo na cópia do documento. Mas não significa que a história parou aí. Todos tiveram a mesma ideia, estado-maior, serviço de espionagem, ministério da guerra, presidente, primeiro-ministro, rei e rainha, todos tiveram a mesma ideia. Criaram um documento falso e venderam para si mesmos. 

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Nós tínhamos um trecho de fronteira ao sul, ou norte, muito desguarnecido, um charco sem interesse de ocupação. A região era muito difícil de proteger, ou não. Os taedos sabiam disto, ou não, e nós tínhamos informações que viria por ali uma invasão, ou não. Era necessário proteger aquela fronteira ao norte, ou sul. Foi durante uma solenidade patriótica no Museu do Exército que alguém teve a ideia. Transportamos para a fronteira desguarnecida uma das mais preciosas joias do museu, o Batalhão de Estafermos, que servia para que as crianças aprendessem sobre a nossa cavalaria de antigamente, ou não. Como o batalhão de madeira na fronteira, os taedos ficaram esperando a invasão. Por que eles não se mexem?, diziam os taedos, deve ser guerra psicológica, diziam os taedos, parecem estátuas, diziam os taedos. Durou alguns anos. Os taedos contam a história com algumas variantes. 

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Não sabíamos o que fazer com tantos prisioneiros de guerra, havia mais taedos presos aqui do que livres lá. Acabamos fazendo um negócio bom para os dois lados. Vendemos os prisioneiros para os taedos. Negociação realizadas com a tabela de preços do tempo da escravidão. Era tão alto o número de prisioneiros taedos que nem cogitamos a hipótese de receber o pagamento e não entregar a mercadoria. 

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A guerra começou a ficar enfadonha. Era necessário criar novos interesses. Mudamos o design do painel dos tanques, traços mais ousados. Novas cores para as ogivas nucleares (verde-piscina, areia, ocre). Metralhadora modelo do ano. Bombas com efeitos pirotécnicos acompanhados por orquestra pré-gravadas. Aviões descarregando bombas coloridas que permitiam melhor visualização através da tevê. Lança-chamas em bisnaga de lança-perfume. Granadas temáticas: as quatro estações, os cinco sentidos, os quatro elementos (chegou-se a cogitar um quinto elemento, a moeda, mas nesta época as granadas temáticas já estavam saindo de moda, não valia a pena). O projeto de recuperar o interesse na guerra deu certo porque os taedos entenderam a gravidade da situação e adotaram a ideia. 

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Todo mundo lembra que as conversações de paz esbarraram, primeiro, no formato da mesa de discussões. Depois na questão de quem ficaria perto da janela. E também não houve entendimento sobre o horário do coffee break. As conversações foram realizadas numa mesa redonda dentro de uma sala sem janelas e com a ausência do serviço de copa. O que era para ser arrastado, arrastou-se. Mas não o suficiente. Repentinamente percebeu-se que as conversações de paz estavam caminhando em uma direção perigosa, os representantes dos dois lados não entenderam o espírito de uma conversação de paz. Antes que acontecesse o pior, nós e os taedos nos juntamos, era preciso acabar com aquilo antes que eles acabassem com isto. Os taedos entraram com o canhão e nós com a bala. O endereço das conversações de paz deixou de existir. A reunião durante a qual aquele local foi transformado em alvo passou para a História como Portão do Além. 

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Os taedos eram muito atrasados, só conheceram a escrita no novíssimo testamento. Assim mesmo por acaso, graças aos passageiros de um objeto em forma de pires que pousou numa plantação de banana-da-terra.

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Os taedos tinham o costume de rezar pelos mortos. Todos os dias às seis da tarde eles se reuniam para fazer orações. Para nós era muito simples, bastava localizar o lugar da reunião e jogar uma bomba em cima. Mesmo assim os taedos continuavam rezando todos os dias às seis da tarde, cada bomba era mais um motivo para rezar. Eles chamavam isso de livre-arbítrio. 

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Havia abaixo-assinados contra e a favor da guerra. O maior argumento a favor da guerra era a origem divina de todos os estados de beligerância. Os pacifistas gritavam slogans dizendo que era preciso fazer amor em vez de guerra. Como se não fosse possível fazer amor durante a guerra. 

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A crise dos mísseis não houve. Uma tentativa bilateral de criar suspense para tirar a indústria da mídia dos dois países de uma crise econômica não funcionou porque as negociações andaram somente até o ponto em que um dos lados deveria assumir o papel de bandido. Nós e os taedos não queríamos o personagem, portanto foi cancelada a crise dos mísseis. A indústria da mídia saiu da crise econômica diversificando as atividades, entrou no ramo da agiotagem. 

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Duvido que você tenha algo melhor para fazer. Venha para a guerra. A frase funcionou maravilhosamente bem. Tanto que os taedos copiaram. Sem pedir autorização, aqueles canalhas.

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O nosso sistema previdenciário não contava para a aposentadoria o tempo do soldado em guerra. Se o soldado achasse que aquele período nas trincheiras valia como trabalho, que fosse pedir aposentadoria para os taedos. 

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Um dia a guerra encheu o saco. Era hora de acabar. Quem sabe, por que não?, recomeçar mais tarde. Enfim, um dia, pois é, a guerra encheu o saco. Não vendia jornal, ficava fora de telejornais, rádios esqueceram que estávamos nós e os taedos em guerra. Cedeu espaços para os recordes de produção agrícola. Vejam só. Uma guerra que perdia espaço para o recordes de produção agrícola. Pelamordedeus, tinha mesmo que acabar. Entretanto, uma guerra não acaba assim sem mais nem menos. Deve existir algo marcante, diria até algo histórico. O assassinato de um duque, barão, príncipe ou primeiro-ministro, isso sim era um fim de guerra adequado, um fim em que a questão humana estaria acima de tudo. Combinamos com os taedos o seguinte: mataríamos um duque, um barão, um príncipe e um primeiro-ministro e terminaríamos a guerra. As mortes foram providenciadas. Nós entramos com um duque e um primeiro-ministro, os taedos com um barão e um príncipe. Cada um matou os seus para ganhar tempo. Outra lembrança muito forte daquela época eram os recorder da produção agrícola. 

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A aviação taeda atacou uma fazenda de criação de galinhas. Confundiu com uma fábrica de armas. Morreram 12.000 galinhas. Os taedos negam. Nós confirmamos. Temos contabilidade. Foram exatamente 12.033 galinhas. O que mais incomodou os taedos foi que passamos a fazer um minuto de silêncio pela memória das galinhas. Um deboche, segundo a História, mas a nossa intenção era sinceramente homenagear as galinhas sacrificadas naquela odiosa carnificina. 

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Quem está ganhando a guerra?
– Nós!
– Nós!

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Nossos soldados invadiram o território taedo pelo norte. De bicicleta. Não houve batalha. Os taedos ficaram tão humilhados pelo tamanho do nosso desprezo – atacar de bicicleta – que preferiram gastar o tempo desmentindo a notícia de que nossos soldados, de bicicleta, invadiram o território deles. Então eles resolveram nos humilhar, mas apenas nos plagiaram. Invadiram o nosso território pelo norte. De camelo. Ficamos tão humilhados pelo tamanho do desprezo deles – atacar com camelos – que preferimos gastar o tempo desmentindo a notícia de que os soldados deles, de camelo, invadiram o nosso território. 

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Foi determinado por lei que, em razão da necessidade de pressa em tempo de guerra, a palavra guerra poderia ser escrita ou pronunciada com um erre apenas. Pequenas atitudes como esta ajudam a ganhar a guerra, disso o porta-voz do exército. E por que não porra com um erre só?, disse o porta-voz da Gramática.1

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O exército providenciou que todas as famílias dos nossos soldados estivessem na mais absoluta normalidade quando eles voltassem da guerra. Para evitar que virassem filmes produzidos pelos taedos. 

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Um dos nossos mais ativos belicistas escreveu um livro defendendo a paz. Chama-se A arte da paz, é claro. Ainda deve estar disponível em alguma biblioteca ou museu do exército. Na capa, uma bandeirola com a palavra bang sai da boca de um canhão. Os lucros com a venda do livro, informava uma frase de letras diminutas acrescida ao colofão, seriam utilizadas na compra de munição para matar taedos. Tem gente que ainda cai no golpe da letra miudinha. 

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A convocação chegou por telegrama, carta, telefone, e-mail, fax e pessoalmente. O funcionário que bateu na minha porta tinha um único braço, nenhuma das pernas. Comunicou o que eu já sabia por telegrama, carta, telefone, e-mail e fax: o narrador deste Jornal havia sido convocado para a guerra. O funcionário da comunicação pessoal contou que tinha voltado do front havia 15 dias e estava destacado para serviços burocráticos. Disse com certa dramaticidade que ele era a prova de que existir a possibilidade de se retornar vivo do front. Bem, minha convocação ia acabar acontecendo mais cedo ou mais tarde. Alguém teria a ideia em algum momento, talvez eu próprio. Embarquei para o front imaginando qual seria o meu serviço burocrático na volta. Escrever o Jornal da guerra contra os taedos, mas eu ainda não sabia. Viajei de trem, minha noiva estava na plataforma me dando adeus. Eu não tinha noiva mas uma lei exigia que todo soldado tivesse uma noiva dando adeus na plataforma. A lei determinava que para quem não tivesse noiva o governo providenciasse uma. A minha era bem bonitinha. O bilhete do trem era claro. Destino: Front. Front com a mesma simplicidade de Paris, New York, Roma, Marte. Supus que a passagem era só de ida por economia, a passagem de volta poderia ser um gasto inútil, o folheto de instruções me orientava para providenciar a passagem de volta na volta se for o caso. O folheto me dava outras informações importantes. Objetivo da viagem: matar taedos. Fiquei dúvida quando à exclamação mais apropriada para minha missão: viva! ou porra! Optei patrioticamente por viva! O folheto mostrava também as vantagens da fast-food nas trincheiras, como limpar o rabo sem papel, o que dizer nas cartas para a família (já trazia cartas prontas, bastava colocar o nome do destinatário e do remetente). Na última página do folheto havia

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Capturamos um espião taedo que, enquanto apanhava um pouco, deu o seguinte depoimento: Quando eu era pequeno e me perguntavam o que eu queria ser quando crescesse, eu sempre respondia que queria ser espião, este é o meu único motivo, portanto dá pra parar de bater?

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O general que plagiava discursos de Churchill não deixou um livro de discursos porque Churchill fez isso por ele. 

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Um funcionário do nosso serviço secreto esqueceu a pasta no banco traseiro de um táxi. Ele explicou: Em toda guerra um funcionário do serviço secreto esquece a pasta no banco traseiro de um táxi, só não sabe quem não vai ao cinema. 

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– Durante a guerra, de que lado você ficou?
– Da indústria bélica. Existe outro lado? 

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No período da guerra em que nós éramos uma monarquia, derrubamos o rei porque preferíamos uma rainha, como os ingleses, naquela época os ingleses tinham rainha. O rei que assumiu o trono também tinha preferências, preferia a república, e começou o período da guerra em que nós éramos uma república. Mas os monarquistas não estavam mortos, com a ajuda dos taedos eles derrubaram o presidente e restabeleceram a monarquia, agora com rei e rainha. A rainha deu um golpe, derrubou o rei e proclamou a república. Etc. Esta nota é necessária para que ninguém pense que, ao aparecer neste Jornal as palavras rainha, rei e presidente, o historiador esteja fazendo confusão, a confusão não é do historiador, é da História. 

 

1 As palavras eram batalha e cacete, que têm dois erres na língua do redator deste Jornal. A tradução optou por duas palavras com dois erres em português para que fizessem algum sentido. (Nota do Tradutor)
Trechos do livro Jornal da Guerra Contra os Taedos (Kafka Edições, 2008)
Foto: Mert Kahveci, Unsplash.
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Três contos de Velhos https://latinamericanliteraturetoday.org/es/2023/03/tres-contos-de-velhos/ https://latinamericanliteraturetoday.org/es/2023/03/tres-contos-de-velhos/#respond Thu, 16 Mar 2023 19:01:54 +0000 https://latinamericanliteraturetoday.org/?p=21619 Nota del Editor: Presentamos este texto en el portugués original y en traducción al inglés. Desplázate hacia abajo para leer en portugués, y haz click aquí para leer en inglés.

 

Herança

Meu avô é um velho inconveniente que faz todas as perguntas que não devia fazer nos eventos familiares. 

Além de fazer perguntas medonhas, ele me encara e comenta que eu engordei, afirma que minha amiga é sapatão, que eu nunca vou arrumar emprego com o curso que faço na universidade, mas tudo bem, porque sou um fracassado igual ao meu pai e fala isso dando aquela risadinha sarcástica de quem está determinado a se meter. 

Meu avô consegue azedar qualquer reunião familiar. Ele começa discussão, ofende. Zomba, magoa. A todos.

Ele tem olhinhos azuis, cabelo todo branquinho, é gorducho e caminha pulando. Quem olha de longe vê um velho fofo. Quem convive de perto está louco pra ir ao seu funeral.

Ele maltrata a vovó. Chama de lesada, define as roupas que ela deve usar e onde pode ir. Se e quando pode ir. E com quem. Joga o prato no chão se a comida não está do jeito que ele quer. Ela não reage.

Ele espancava os filhos quando pequenos – meu pai e meus tios. E agora que os filhos estão adultos, sempre se dirige a eles com sarcasmos ou palavrões. Ele nunca nos abraçou. Me chama de Breno e meu nome é Bruno. A Carla ele apelidou de Saco de Banha!, ela é a minha prima complicada com o controle do peso. Já tentou se matar, é depressiva. Minha tia fica arrasada. Meus primos gêmeos ele chama de “os dois” e outro primo, o Gil, de “o menino”. A minha prima Cássia, eita!, essa ele ignora. Tem tatuagens e piercings, para ele não existe. Ela diz – Olá, avô! Ele vira a cara.

Estamos na delegacia. Meus pais, tios, tias, primos, primas e vovó. Depois desse ridículo e desprezível almoço de natal. Vovó é a única que chora e repete Tadinho, tadinho. 

Meu avô nunca mais escarnecerá de ninguém. Foi esfaqueado, enquanto dormia, após o almoço, com a faca nova de cortar o peru. Durante o almoço ele ofendeu, zombou e xingou a todos.

Impressionante sua capacidade de humilhar, menosprezar e detonar. Meu avô era brilhante na maldade.

Somos muitos e somos todos suspeitos, mas o delegado já ganhou uma graninha e semana que vem todos ficarão sabendo da tentativa frustrada de assalto. E comentarão, impressionados, da valentia do meu avô, que sozinho no quarto, reagiu. O resultado final foi que, infelizmente, ele não resistiu aos ferimentos na luta feroz, corpo a corpo com o marginal.

A vida seguirá. E a maldade da minha família, que era só do velho, agora está em todos nós.

 

Desculpas

Sou preto e sou velho. Diferente da maioria dos pretos no Brasil, sou rico. Moro num condomínio sofisticado, num bairro de brancos que acham muito esquisito a minha família preta morar ali.

Tenho setenta anos e pratico muitos esportes. Gosto especialmente de corrida.

Dia desses fui correr até a beira da praia. Na segunda quadra após o condomínio, passei em frente ao posto de gasolina. No momento em que passei, acontecia um

assalto.

Dois dentes quebrados, três costelas fraturadas, as maçãs do rosto raladas, nariz sangrando, braço esquerdo luxado. Cusparadas na cara, tapas na orelha, vários socos no estômago.

Uns brutamontes me agarraram, me esfregaram no chão de asfalto e me levaram para a delegacia como suspeito.

Meu advogado-branco veio me socorrer. Sou médico, sou dono de uma clínica, tenho três especializações, dou aulas, tenho vários livros publicados, falo quatro idiomas.

Até agora ninguém me pediu desculpas. Ficam repetindo que eu sou preto, nem pareço um velho e estava correndo, como iam saber que eu não era um marginal?

 

Lucros

Tenho setenta e sete anos e estou muito gordo. Tenho problema de coração, muitas varizes, asma e pressão alta.

Semana passada aconteceu uma catástrofe. Quebrei a balança na farmácia da rua de casa. Vinha da pastelaria, onde tinha comido cinco pastéis de queijo, quatro de carne e tomado duas garrafas de coca. Da calçada avistei a balança nova, tão bonita. Comia a última batata do saco grande de Rufles quando entrei para checar meu peso.

Um moleque filmou tudo com um iPhone. Está no YouTube.

Viralizou.

O título do vídeo é Velhão quebra-tudo. A trilha sonora é um funk. A cena repete, repete. Um vexame. Meus filhos e seus amigos viram, meus netos e seus amigos viram. Meus vizinhos e seus amigos viram. Todo mundo que eu conheço viu. Tem mais de cento e cinquenta mil visualizações. 

Nas montagens do vídeo, além da balança da farmácia, eu quebro a ponte Rio-Niterói, quebro o Palácio da Alvorada, quebro o Cristo Redentor e mais um monte de lugar famoso.

Em frente ao supermercado uns garotos fizeram uma selfie comigo. Na padaria fui recebido com assobios, aplausos, gargalhadas e gritos de Viva o velhão! Fiquei famoso com essa exposição humilhante. Meu barbeiro nem cobrou meu corte de cabelo.

Paguei o prejuízo da balança ao seu Osório, dono da farmácia.

O garoto do iPhone filmou o momento do pagamento e a minha saída da farmácia, comendo um pacote médio de amendoim. O título deste vídeo é Velhão paga-tudo. Na montagem eu pago os salários atrasados dos professores, pago as aposentadorias atrasadas dos velhotes, pago a dívida externa. A trilha sonora é um pagode. O vídeo do quebra-tudo me rendeu um corte de cabelo gratuito, assobios, aplausos e vivas!, espero que o vídeo do paga-tudo me renda muito mais.

De Velhos (Editora Reformatório: São Paulo, 2020)
Foto: Tres carros viejos en Embu-Guaçu, Brasil, por Rustyness, Unsplash.
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Recepção de animais ou 29 retratos de uma tarde genérica https://latinamericanliteraturetoday.org/es/2022/12/recepcao-de-animais-ou-29-retratos-de-uma-tarde-generica/ https://latinamericanliteraturetoday.org/es/2022/12/recepcao-de-animais-ou-29-retratos-de-uma-tarde-generica/#respond Sat, 10 Dec 2022 15:10:37 +0000 https://latinamericanliteraturetoday.org/?p=20296 Nota del editor: Este texto está disponible en portugués e inglés. Haz click en “English” para leer en inglés.

 

Retrato 1

Uma sala de espera. Feita para esperar. Espalham-se por ela algumas dezenas de cadeiras estofadas azuis nas quais esperam 27 animais. Eles esperam com impaciência, mas desprovidos de uma conduta selvagem, entre paredes cor de abóbora, vasos com graciosos pés de manacás floridos e outros maiores com chefleras e filodendros, espelhos ovais e mesas cheias de revistas sobre moda e arquitetura. No centro da sala, uma fonte quadrada de pedras verdes foi ligada pela secretária que masca um chiclete de morango atrás de um balcão. A fonte espirra um fio d’água leitoso da boca de um querubim.

 

Retrato 2

Uma girafa lixa as unhas. Mastiga devagar um pacote de balas pegajosas. Faz barulho, deixa escorrer uma baba amarela. Na verdade, ela provoca a secretária, cuja mastigação sonora também não passa de uma provocação — talvez para fazer com que alguns dos animais desistam da consulta e vão embora. A girafa tem torcicolo e dificuldade para enxergar as unhas negras.

 

Retrato 3

Uma joaninha pula repetidamente da cadeira. Não pula, se joga. Em cada queda, uma decepção diferente. Ela sabe que não é o melhor lugar para cometer suicídio, mas não vê quem pode ajudá-la. Os outros estão muito concentrados em suas tarefas, afundados em seus preciosos momentos de tédio. E ela respeita isso. Só não respeita a vida que ainda insiste, que luta contra ela. A joaninha se joga da cadeira com as asas fechadas. Quando cai, não sente nada. Ela se odeia, mas além do corpo, possui um orgulho indestrutível que, inconscientemente, vai contra todos os seus desejos.

 

Retrato 4

Uma lontra tricota. Usa óculos de aros dourados e finos, tem os dentes da frente pronunciados e olha com desconfiança para as cadeiras mais próximas. De vez em quando solta um espirro estridente, mas continua tricotando. A peça de lã é da cor dos seus pelos e já está maior do que ela. Talvez use durante o inverno, talvez doe para as lontras em situação de rua.

 

Retrato 5

Um camaleão medita. A cada minuto, muda de cor. Mais novo, podia se camuflar onde bem quisesse. Agora não tem o poder de antes, mas ainda se esconde no azul da poltrona. Tem medo de que alguém sente em cima dele, então fica amarelo e branco como um píton. Enquanto medita, mantém os olhos bem fechados, cheios de dobras como se a história da animalidade tivesse se acumulado ali, em bolsas de pele e tempo áspero.

 

Retrato 6

Uma hiena confere o meio das pernas. Menstruou naquela manhã, tem medo de que desça de novo, que o sangue cubra o chão. Os outros sentiriam nojo, julgariam sua condição de fêmea. A calcinha continua cor-de-rosa. Ela cruza as pernas inseguras e relaxa o corpo. Talvez um sorvete aliviasse a cólica. Desde que chegou, não para de lamber os dentes, como se fosse caçar. Ri à toa e seu riso faz a joaninha cair da cadeira de susto — mas ela ainda não morre.

 

Retrato 7

Uma cobra tenta dançar um ritmo latino que sai das pequenas caixas de som da secretária. Não se importa com ninguém. Quer dançar a “Macarena”, mas sente necessidade de um espelho e os espelhos da sala estão todos ocupados — alguns cobertos por vasos cheios de plantas de mau gosto. Ela se lembra dos braços articulados, da descida com as mãos na cabeça e segura a vontade de chorar pela falta de membros. Ainda assim, balança corpo e cauda em movimentos opostos e sente-se minimamente mais feliz.

 

Retrato 8

Um flamingo se admira no espelho. É um dos poucos animais de pé, prefere o espelho ao descanso das cadeiras. Ele se acha lindo, podia estar na internet falando de livros que não leu ou de vinhos que não provou. Estufa o peito — não como um pombo, porque os detesta — e mexe as pernas finas. Sente que o cor-de-rosa do pescoço está indiscutivelmente mais branco, quase grisalho. Tem medo de envelhecer e sorri para esticar o rosto. O bico atrapalha. Talvez um pouco de botox? Manda um beijo para o reflexo, que responde, e ficam assim indefinidamente.

 

Retrato 9

Uma porca passa batom. É bem pequena, quase borra o rosto de vermelho. As pérolas no pescoço largo foram colocadas especialmente para o médico. Agita uma das patas com nervosismo, desejando a irritante tranquilidade do camaleão. Se pudesse, saltaria da cadeira para também se admirar no espelho, mas tem preguiça. Sente-se exausta só de fechar o batom, cuja tampa está toda suja de lama seca.

 

Retrato 10

Uma libélula voa da cadeira para a fonte e desta para a cadeira. O movimento deixa alguns dos animais tontos, mas ela sente uma necessidade doentia de voar. Quando se cansa, senta na cabeça do querubim e começa a contar o tempo que passa num relógio preso na parede sobre a secretária.

 

Retrato 11

Um cachorro coça o saco. Faz isso com elegância, olhando para os lados, certificando-se de que ninguém o observa. Quando a libélula parece perceber um mínimo movimento de sua pata peluda dentro da calça, ele enrubesce. É um dálmata cujas manchas escuras passam do preto para o castanho. Ele sorri um sorriso malandro e rapidinho cheira a pata. Pensa em tirar a roupa, mas só em casa, onde tem cerveja e televisão.

 

Retrato 12

Uma barata lê Kafka. Está suada e concentrada. Suas antenas giram perturbadas, mas ela não pode fazer nada sobre isso, afinal está preocupada com o rumo da história, talvez até com o rumo da própria vida. No entanto, nenhum receio é maior do que um dia acordar com dois braços, duas pernas e uma enxaqueca, acreditando que a Terra seja plana.

 

Retrato 13

Uma gata palita os dentes. Lança fragmentos molhados de peixe nos outros animais que olham torto. Não faz isso com todos, mas com os que parecem mais divertidos de irritar, mais suscetíveis à provocação. Depois atira o palito na fonte, que não cobre o jato de água leitosa como queria e, decepcionada, passa a se lamber: primeiro as patas, depois as partes íntimas, numa clara tentativa de atrair qualquer um. Está desesperada para dar.

 

Retrato 14

Um pinguim lê uma revista de arquitetura. Está fascinado com os vários formatos de iglu apresentados durante uma convenção de arquitetos da qual não fez parte. Arrepende-se amargamente de ter ficado ali. Ao virar as páginas, encontra não só os novos materiais usados na construção dos iglus, mas suas novas funções e valores. Fica espantado. A inflação deixou o gelo muito mais caro. Decide fechar a revista e tira os óculos, nitidamente preocupado com os novos riscos do mercado econômico.

 

Retrato 15

Um gambá segura um peido, mas seus olhos estão estalados, talvez saltem da cabeça. Tem medo de ser morto ali mesmo, pisoteado pela girafa, esmagado pela cobra, dilacerado pelo dálmata. Alguma coisa pode acontecer, mas não o relaxamento. Não pode nem sair para o banheiro, temendo que alguma coisa escape e, assim, entre para os anais da sala de espera.

 

Retrato 16

Uma mosca lê a Bíblia. Tem minúsculos óculos chapados na cara redonda. São treze graus de miopia nos dois olhos, um e meio de astigmatismo no direito. Lê com fé, com fervor. As asas farfalham enquanto passa pelo Evangelho segundo Lucas. Está tão emocionada e tão empolgada que pensa em abrir um canal de tevê só para moscas, mas só para aquelas que pensam como ela. Que as restantes queimem vivas nas raquetes elétricas. Amém.

 

Retrato 17

Um pônei fuma um cigarro de cravo. Está no terceiro. Não é permitido fumar na sala de espera, nem fora dela, ambiente que ainda pertence à clínica até a esquina, mas ele pouco se importa. Nas duas vezes em que a secretária o criticou pela fumaça, chamando-o de “cidadão”, ele a mandou tomar no cu e acrescentou: “cidadão não, pônei corredor, melhor do que você”. Fuma devagar e pensa em se levantar para dar um coice no flamingo, mas não quer ser expulso.

 

Retrato 18

Uma gralha bebe uma taça de Syrah. Bebidas alcoólicas fermentadas são permitidas na sala de espera. O vinho tem cheiro de pólvora, mas é bom. Ela trouxe de uma festa, da qual roubou também uns brincos de prata e uma dúzia de diamantes escondidos sob o corpo. Está de olho nos óculos da lontra, reluzentes como uma mina fervilhante de ouro. Gosta desse vinho, mas teria preferido algo mais leve, mais suave. Um Riesling, talvez.

 

Retrato 19

Um ornitorrinco vesgo se pergunta o que está fazendo ali.

 

Retrato 20

Um coelho de chapéu azul recorta todos os vestidos que encontra nas revistas de moda. A secretária o vigia, mas não faz nada. Não sabe onde ele encontrou a tesoura, talvez tenha trazido dentro da pochete prateada que aperta a barriga peluda. Não tem certeza. Ele corta com pressa, mordendo a língua e sempre bate os pés ao terminar. Corta as cabeças das modelos e as coloca em novos vestidos, trocando os corpos e às vezes os membros.

 

Retrato 21

Uma tartaruga não faz nada. Não contempla a própria espera, tampouco a espera dos outros. Não se finge de morta nem pensa que está viva. Ela pisca sem vontade e evita pensar na volta, quando sair dali e não houver mais táxis para chegar em casa.

 

Retrato 22

Uma coruja tenta jogar uma maldição no relógio, fazê-lo acelerar. É uma bruxa, sabe o que falar, como falar, os nomes que precisa invocar, quanto dos olhos precisa girar. E seus olhos são de cólera. Pensa inúmeras vezes se deve incendiar a fonte ou acabar com o sofrimento da joaninha. Talvez comê-la fosse uma ideia melhor.

 

Retrato 23

Uma cigarra gira no próprio eixo e solta faíscas. Ninguém sabe se para chamar a atenção ou porque está incomodada com alguma coisa. O giro é constante, enfadonho, parece um pião desgovernado. Ela sente-se tonta e para de repente, soltando um uivo que atrai olhares de desagrado. Em seguida, pede desculpas e volta a girar.

 

Retrato 24

Um hipopótamo olha para as plantas, analisa a cor das paredes, tem uma postura invejável. Talvez seja o animal mais elegante, a presença mais emblemática da sala de espera. Usa um cardigã italiano azul-marinho, cobrindo parte da pele escura e oleosa, cujo brilho também provoca a gralha de maneira involuntária. Ele é o único que está satisfeito com o tempo e com a espera, só se sente incomodado por não caber na fonte.

 

Retrato 25

Um sapo de boina pensa em ir embora. O cheiro do vinho e do cigarro de cravo deixam-no perturbado. Não bebe nem fuma há 4.129 minutos, uma vitória para ele, um alívio para a família. Usava drogas mais pesadas, fazia parte das bocas, mas não sente falta de nada disso, só do vinho barato e do cigarro. Seus olhos estão vermelhos e ele imagina, com um sorriso, sua língua esticando para roubar o cigarro do pônei.

 

Retrato 26

Uma abelha fala sozinha. O zumbido é irritante, fino, prolongado. Ela pronuncia palavras desconexas, às vezes pela metade, e parece que vai explodir a qualquer instante. Usa roupa apertada de academia, poliéster preto e amarelo, e às vezes voa até a fonte para beber a água leitosa.

 

Retrato 27

Um carneiro escreve sua autobiografia num caderno pautado. Sua expressão às vezes parece suspeita, como se resgatasse da sala de espera algumas ideias inesperadas e proibidas. Ele gosta da privacidade, mas não a respeita. Já escreveu sobre o cachorro, sobre a mosca, sobre o coelho. Adora uma fofoca. Quanto mais escreve, mais sente calor. Lembra com tristeza que precisa ser tosquiado.

 

Retrato 28

Um macaco albino, que vinha mastigando folhas de coca e jogando palavras-cruzadas, deixa a própria cadeira e pisa na joaninha.

 

Retrato 29

O lado de fora da sala de espera. Uma rua tomada de lilás pelo fim da tarde. A noite se aproxima e a clínica permanece aberta. A fachada, asseada e clara como a entrada de um spa, está cheia de carros. Dentro deles, humanos esperam, apoiados nos vidros traseiros, suando pelas bocas abertas. Outros estão presos por coleiras do lado de fora, amarrados em barras de ferro colocadas ali exclusivamente para isso. Pelados, homens e mulheres aguardam seus donos. Estão com sede e fome, lambem as axilas, o meio das pernas, babam sobre os pés, cagam onde podem, mijam nas plantas que já estão mortas. Esperam com o coração acelerado, sonhando com bolinhas coloridas, latas de sardinha, pedaços suculentos de carne e potes cheios de ração.

Foto: Flamengos, Laguna Colorada, Salar de Uyuni, Bolivia, por Elizabeth Gottwald, Unsplash.
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